Giba Assis Brasil
(publicado originalmente no Terra Magazine)
14/06/2006
Pronto, já disse. Tenho certeza que vou me arrepender disso. Perderei amigos, serei apontado nas ruas, minha casa será pichada, meus filhos sofrerão discriminação no colégio. No Brasil, pentacampeão da Fifa, o esporte mais popular não é o futebol: o ódio aos portenhos, esse sim, chega à quase unanimidade. Em fevereiro, no show do U-2 em São Paulo, a coisa mais divertida foi ver a cara de espanto do Bono quando, depois de fazer a multidão aplaudir à menção de países tão distantes como Costa Rica e Guatemala, a vizinha Argentina foi saudada com uma uníssona e ruidosa vaia. Como não pretendo me mudar para Dublin, sei que terei problemas. Mas fazer o quê? Eu gosto de argentinos.
Boa parte do meu gosto literário se formou lendo Cortázar (que nasceu na Bélgica, eu sei) e se afinou com Borges. Conheço pouco de Sábato, Quiroga, Hernández, Bioy Casares, mas o suficiente para admirá-los - nem mais nem menos que aos grandes escritores brasileiros ou de qualquer outro país, pois não se trata de comparação -, o bastante para perceber a literatura argentina com uma tradição, uma consistência e uma humanidade que nos deu Puig, Mempo, Piglia.
Três anos atrás, Jean-Claude Bernardet provocou meus colegas ao escrever que o cinema argentino contemporâneo “dava um banho” no brasileiro, em termos narrativos, poéticos e inclusive de comunicação com o público. Vamos esquecer a comparação e a provocação de nosso mais importante pensador audiovisual. Mas como não gostar de “Un Lugar en el mundo”, “La Historia oficial”, “Pizza, birra y faso” - e, mais recentemente, de “El Hijo de la novia”, “Nueve reinas”, “La Ciénaga”? Como não reconhecer que nossos “hermanos” têm sido mais eficientes em equacionar cinema e mercado, mais democráticos na relação entre cinema e televisão?
A música argentina é em geral imediatamente associada ao tango, a Gardel e Discépolo. Mas o que realmente me agrada nela é sua variedade, que vai de Piazzola a Mercedes Sosa, de Lito Vitale a Fito Paez, de Les Luthiers a Charly Garcia. Como na música brasileira, é verdade.
A história recente argentina também não é tão diferente da nossa, mas com o tango ocupando o lugar do carnaval: a ditadura deles foi mais violenta, mas a oposição também foi mais contundente e, lá, os torturadores foram pra cadeia. A crise econômica argentina foi mais fundo que a nossa, e o enfrentamento da questão da dívida foi mais corajoso. Mais radical. Não é por acaso que o grande ídolo político e existencial de toda uma geração, o cara que fez a revolução e se recusou a ser governo, antes de se tornar o símbolo dos guerrilheiros latino-americanos e morrer na Bolívia era um jovem médico argentino, Ernesto Guevara da la Serna.
Gosto do futebol argentino. Maradona não é e nunca foi melhor que Pelé, é claro, e a idéia de um zagueiro portenho é quase sinônimo de pesadelo para qualquer um que já tentou jogar futebol. Mas admiro o jeito argentino de nunca dar espaço pro adversário, a teimosia de nunca desistir de um jogo perdido, no campo ou na arquibancada.
Gosto inclusive de piadas sobre eles. Minha favorita, já há vários anos, é a da maternidade. Na sala de espera, três pais aguardam, ansiosos: um nigeriano, um francês e, claro, um argentino. (Não me perguntem onde fica esse raio de maternidade: é uma piada, ora bolas!) A enferemeira-chefe vem avisar (sei lá em que língua) que as três crianças nasceram perfeitamente bem, mas que, em função de uma rápida queda de energia, foram misturadas, e não há mais como saber quem é filho de quem. (Isso foi antes dos exames de DNA, eu falei que a piada era antiga.) Depois de alguns momentos de indecisão, os pais resolvem tirar na sorte quem vai ser o primeiro a tentar escolher o seu filho. O francês ganha o sorteio, entra no berçário e em seguida volta, trazendo no colo uma criança negra. O nigeriano protesta: “Puxa, pensei que, sendo eu o único negro aqui, ao menos não haveria dúvida sobre o MEU filho.” E o francês responde: “E você acha que eu ia correr o risco de ficar com um filho argentino?”
Ou aquela definição, bem curta, formulada pelo cineasta paulista Cecílio Neto, e que de certa forma explica todas as piadas do gênero: “Ego é aquele argentininho que todos nós temos por dentro.”
É verdade, alguns argentinos são pretensiosos, como certos alagoanos são corruptos e determinados georgianos são autoritários. E daí? Do meu ponto de vista, só o fato de ter sido o berço da doçura de pessoa que foi o cineasta e professor Lyonel Lucini, meu amigo falecido ano passado, já redime a Argentina pelo menos até o fim deste século.
Sei que eu não devia tocar nesse assunto especialmente em época de Copa do Mundo. Mas, já que vim até aqui, vamos adiante. Eu confesso: já torci para a Argentina numa Copa. Isso foi em 1974, ano em que o Brasil tinha dois jogadores do Inter convocados, Carpeggiani e Valdomiro - esse agravante é mortal. Mas acontece que naquela época a ditadura brasileira já completava sua primeira década, enquanto que nossos vizinhos passavam pela saudável e breve experiência democrática do governo de Isabel Perón. O Brasil já era obrigado a engolir o Zagalo, enquanto que a Argentina tinha em campo um bando de cabeludos irresponsáveis que jogavam muita bola - Ayala, Babington, Kempes, Houseman. E, claro, além de tudo isso eu tinha 17 anos. Seja como for, nem a minha torcida, nem todas essas circunstâncias impediram a Argentina de levar um humilhante 4x0 da Holanda.
Aquelas circunstâncias não vão se repetir tão cedo, principalmente os meus 17 anos. Vou torcer para o Brasil nesta Copa, é claro. Mas, ao contrário de muita gente, não temo uma final contra a Argentina: ao contrário, é tudo o que eu quero. E que ganhe o melhor.
* Giba Assis Brasil não tem endereço conhecido, não adianta insistir.