Giba Assis Brasil
(publicado originalmente no Terra Magazine)
20/07/2006
“Comece pelo começo e prossiga até chegar ao fim: então pare.”
Com algumas variações na tradução, esta frase de Lewis Carroll é seguidamente citada como uma anti-receita para narradores, uma reflexão bem-humorada sobre a simplicidade e o mistério da arte de contar histórias, eventualmente um argumento de autoridade contra as formas narrativas complexas ou simplesmente “enroladas”.
A frase apareceu em 1865, no último capítulo de “Alice no País das Maravilhas”. É o julgamento do Valete de Copas, acusado de ter roubado as tortas da Rainha. O Coelho Branco encontra uma carta que teria sido escrita pelo prisioneiro, o que seria um indício de culpa. Mas o Valete, ao ser confrontado com a carta, nega tê-la escrito e estranha a acusação, já que não há nenhuma assinatura no final. “Isso é um agravante”, diz o Rei, “demonstra que você tinha más intenções, ou teria assinado a carta como um homem honesto”.
A corte aplaude a “primeira coisa realmente inteligente dita pelo Rei naquele dia”. A Rainha grita: “Isso prova que ele é culpado!” Mas Alice protesta: “Não prova nada. Vocês nem sabem o que está escrito na carta.” Então, naturalmente, o Rei pede que a leiam. O Coelho Branco coloca seus óculos e pergunta: “por onde eu começo, Majestade?” E o Rei, em tom grave, responde:
“Begin at the beginning and go on till you come to the end: then stop.”
Então o Coelho lê, e a carta é na verdade um poema em que a Alice não vê “um átomo de significado”, mas que o Rei interpreta à sua maneira, para enfim pronunciar a sentença - o que não chega a acontecer, porque Alice acorda. Eu falei que era o último capítulo.
Ora, mas então a frase se refere ao ato de ler, e não ao de escrever, o que talvez descontextualize boa parte de seus divulgadores, em geral empenhados em ensinar aos leitores e alunos os caminhos mais curtos para a escrita narrativa.
Mas talvez não. Ler em voz alta não deixa de ser uma forma de narrar. O Coelho, realmente, estava lendo uma carta cuja autoria era (e continuaria sendo) desconhecida. Mas, para o Rei, tratava-se de um testemunho, de um relato, de uma história a ser contada - e é a isso que ele se refere quando proclama o que seria a correta maneira de relatar.
Ou ainda: na medida em que tudo se passa dentro de um sonho de Alice (como logo veremos), a impaciência do Rei é a curiosidade de Alice pelo andamento de sua própria aventura - um relato que o seu inconsciente tarda em fazer, e que ela insiste em colocar da forma mais adequada para o leitor (no caso, ela mesma).
E não podemos nos esquecer que, na verdade, a carta e o poema (juntamente com o seu suposto autor, mais o eventual leitor de óculos, o tribunal reunido em torno deles e ainda o Rei que ordena a sua leitura e finalmente a menina que assiste e a menina que sonha com tudo isso) foram inventados por Lewis Carroll (aliás Charles Dodgson) e portanto, muito provavelmente (já que não conhecemos o suficiente do processo criativo de Carroll para saber como ele construía suas histórias), no momento em que a tal frase é pronunciada, a carta e o poema ainda não existiam, e por conseqüência não poderiam ser lidos.
Mais (e aqui saímos da digressão literária para o nebuloso campo da especulação biográfica, também conhecida como fofoca): o próprio filho do Reverendo Dodgson, um matemático que, no mesmo ano de “Alice no País das Maravilhas” publicou um “Tratado Algébrico sobre o 5º Livro de Euclides”, foi também autor de belas fotos de meninas em poses que, hoje em dia, certamente lhe teriam rendido um processo por pedofilia. Uma das meninas fotografadas, Alice Liddell, que tinha 13 anos na época da publicação do livro, teria sido também a inspiradora e primeira ouvinte da história.
A frase sobre “começar do começo” é certamente ditada para Carroll por Dodgson, talvez um tanto impaciente com essa história absurda cujo final ele (Carroll) vai adiando, impedindo que ele (Dodgson) possa ir finalmente visitar a pequena Liddell com o livro embaixo do braço, sua câmara na mão e sabe-se lá que idéias na cabeça.