O último rei e o último padre

Giba Assis Brasil
(publicado originalmente no Terra Magazine)
03/08/2006

Quem for procurar no Google, e se contentar com a primeira página de resultados, vai descobrir que a frase “O mundo (ou o homem) só será livre (ou deixará de ser miserável) quando o último rei (ou déspota) for enforcado nas tripas do último padre” é de Diderot (ou Voltaire).

Mas a primeira página do Google é apenas um retrato da internet: uma babilônia de dados confusos, repetidos, contraditórios, inúteis e muitas vezes incorretos. Se fizermos o mesmo tipo de pesquisa apressada com, por exemplo, “Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, sem amor eu nada seria”, vamos chegar à conclusão de que a Primeira Epístola aos Coríntios foi escrita pelo Renato Russo.

Além da primeira página do Google, aparece a verdadeira riqueza oculta da internet: informação quase ilimitada, a biblioteca de Alexandria dos tempos modernos, eternamente em construção. Os únicos requisitos para chegar lá são curiosidade, paciência e um pouco de sorte.

A frase original em francês sobre reis e padres é um pouco diferente, tão violenta quanto a que chegou aos nossos dias, mas de um ponto de vista individual e não vinculado a uma possível libertação da humanidade: “Eu gostaria, e este será o último e o mais ardente dos meus desejos, eu gostaria que o último rei fosse estrangulado com as tripas do último padre.” (“Je voudrais, et ce sera le dernier et le plus ardent de mes souhaits, je voudrais que le dernier des rois fût étranglé avec les boyaux du dernier prêtre.”)

Desde 1729, ano em que a frase foi publicada, duas grandes revoluções e muitos embates menores arrancaram as tripas de muita gente, até mesmo de alguns reis e padres. E a frase foi sendo modificada de acordo com as conveniências do momento: “o mundo só será livre quando…” marca a crença na “revolução final” que viria libertar a humanidade de séculos de opressão; o ato criminoso, mas individual, do estrangulamento foi substituído pela forca, provavelmente numa tentativa de dar um caráter ritual à violência dos processos históricos; o próprio rei a ser assassinado deixou de ser um rei qualquer e foi especificado como déspota, certamente num período em que se supunha possível uma monarquia democrática ou “progressista”. Mas o padre continuou lá, morto e eviscerado, em quase todas as versões, mesmo depois de João XXIII e do Concílio de Puebla.

E o mais surpreendente em torno dessa frase não é tanto o fato de ela ser anterior a Diderot, Voltaire e o enciclopedismo, mas que seu autor, na verdade, tenha sido um padre.

Jean Meslier (1664-1729), cura da aldeia de Étrépigny, passou seus últimos anos de vida rezando missas, celebrando batizados e matrimônios, enquanto, à noite, preparava uma tentativa de extrema unção do Estado católico francês: seu livro de memórias, de título quilométrico, geralmente reduzido para “Memória dos pensamentos e sentimentos do abade Jean Meslier”, tratando dos “erros e abusos dos governos” e principalmente da “falsidade de todos os deuses e religiões do mundo”. Foi neste livro que nasceu a frase, o “desejo mais ardente”, as tripas de uns no pescoço dos outros.

Publicado postumamente, o livro do “padre ateu” Meslier tornou-o um dos precursores do iluminismo. Voltaire, então com 35 anos, foi seu primeiro editor, fazendo circular por toda a França suas idéias subversivas e anti-católicas numa versão reduzida, “Extrait des sentiments de Jean Meslier”.

Diderot, que na época tinha apenas 14 anos, mais tarde escreveria (em “Les Éleuthéromanes”) um poema em alusão direta à frase mais violenta e mais conhecida do “pai do ateísmo”: “E suas mãos arrancarão as entranhas do padre / na falta de uma corda para estrangular os reis.” (“Et ses mains ourdiraient les entrailles du prêtre / Au défaut d’un cordon pour étrangler les rois.”) Violento sem dúvida, eventualmente visionário, mas sem a menção aos “últimos” e menos ainda à necessidade de mortes para a redenção dos sobreviventes

Foi Jean-François de la Harpe, que só iria nascer em 1739, 12 anos após a morte de Meslier, o responsável pela confusão em torno da autoria da frase. La Harpe, um pós-iluminista que, ao contrário de Voltaire e Diderot, viveu para presenciar a Revolução de 1789 e o terror jacobino, tornou-se no final da vida um reacionário defensor da monarquia.

Em seu “Cours de Littérature Ancienne et Moderne” (1799), La Harpe alterou os versos de Diderot, citando-os assim: “E com as tripas do último padre / estrangulemos o pescoço do último rei.” (“Et des boyaux du dernier prêtre / Serrons le cou du dernier roi.”) Engano histórico? Talvez. Mas não me parece tendencioso ver aí uma deliberada intenção de acusar os iluministas (e por extensão os intelectuais, as idéias) pelos rumos violentos da História.

Seja como for, a frase seguiu seu rumo, às vezes usada para justificar assassinatos, outras para exprimir ódios mortais ou simples revoltas, às vezes apenas para atribuir culpas. O livro de Meslier, que eu saiba, só foi publicado em português em 2003, pela editora Antígona, de Lisboa, com tradução de Luís Leitão. Em 2004, Paulo Jonas de Lima Piva doutorou-se em Filosofia na USP com uma tese sobre “os manuscritos de um padre anticristão e ateu: materialismo e revolta em Jean Meslier”.

Uma das muitas e criativas pixações de maio de 1968 em Paris propunha uma variação interessente para o desejo de Meslier: “E depois de estrangular o último burocrata nas tripas do último sociólogo, ainda teremos problemas?” (“Lorsque nous aurons étranglé le dernier bureaucrate avec les tripes du dernier sociologue, aurons-nous encore des problèmes?”)

Quanto aos iluministas, eu prefiro ficar com outra frase de Voltaire, sem tripas, sem enforcamentos, sem mísseis: “Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o teu direito de dizê-lo.” É só estar preparado para ouvir (e ler) muita bobagem.


Bem feito pra mim: poucos dias depois que publiquei esse texto, um leitor do Terra Magazine (infelizmente perdi o nome dele) veio me esclarecer que a “frase de Voltaire” citada no final na verdade não é de Voltaire, mas de sua biógrafa inglesa Evelyn Beatrice Hall, no livro “The friends of Voltaire”, publicado em 1906 sob o pseudônimo de S. G. Tallentyre. Pior do que acreditar no Google é confiar demais no que a gente pensa que sabe.