A sua causa

GIba Assis Brasil
(originalmente publicado no Terra Magazine)
06/02/2007

Aibofobia é um neologismo em várias línguas. Já tem 987 ocorrências no Google, em italiano, espanhol, inglês, português, finalndês, francês e mais alguns idiomas que eu não consegui identificar. Significa, ou deveria significar, “medo mórbido de palíndromos”, se o Houaiss ou o Aurélio estivessem atentos para o assunto. Não, não há nenhum surto de aibofobia em qualquer canto do mundo, que eu saiba. Pensando bem, eu nunca ouvi falar de uma única pessoa que apresentasse este sintoma. Ainda assim, a palavra se espalha por aí, mais uma vez comprovando que “no princípio era o verbo”, o sentido veio depois, aos poucos.

Aibo não significa palíndromo, nem em grego nem em latim. Aiba, me conta o Houaiss, é “coisa estragada ou azeda” em tupi-guarani, mas certamente não é essa a origem do termo. Aibofobia é aversão a palavras que podem ser lidas ao contrário, sim, mas por um motivo mais simples que qualquer etimologia: a própria palavra é um palíndromo, caso não tão raro assim de diagnóstico que esconde a doença.

Por isso, a mania de fazer palíndromos, muito mais comum que o seu hipotético oposto (tanto que de vez em quando se instala em gente respeitável como Millôr Fernandes, Chico Buarque de Hollanda ou José Miguel Wisnik e sua filha Marina), não pode de maneira nenhuma ser chamada de aibomania e sim, é claro, ainamania.

Aliás, a reação das pessoas aos palíndromos não costuma ser de pavor. É verdade que alguns acabam se tornando ainamaníacos (ou socainamaníacos?), mas a maior parte da humanidade simplesmente não se interessa pelo assunto, no que tem toda razão. Sugiro para esta maioria de pessoas sensatas e indiferentes a palíndromos o diagnóstico de aitapatia. Quanto aos poucos que se dedicam a este ócio re-heróico, espero apenas que não façam do palíndromo uma religião, tornando-se patéticos sartalólatras.

O advogado e ex-deputado Rômulo Marinho é considerado o maior palindromista da língua portuguesa. Ele é autor, por exemplo, da obra-prima “seco de raiva, coloco no colo caviar e doces”, que eu e meus filhos tentamos adaptar para algo como “louco de furioso, ponho no bolso salgadinhos e quindins”, mas a primeira tentativa, lida ao contrário, foi decepcionante. Marinho divide os palíndromos em “explicitus”, “interpretabiles” e “insensatus”, conforme o seu significado seja, respectivamente, claro e coerente, um pouquinho forçado ou, digamos, “nem que a vaca tussa”.

Já o meu amigo Laerte Coutinho, grande cartunista e artalólatra atualmente não-praticante, tem uma tese diferente: todo palíndromo tem um significado preciso; trata-se apenas de ter o trabalho de encontrá-lo. Algum tempo atrás, na revista Língua Portuguesa (editora Segmento), ele se dispunha a buscar, através do desenho, o sentido de algumas de suas antológicas composições palindrômicas, como “rir, o breve verbo rir” e “livros - se for pagar, traga professor vil”. E ainda assinava: “Laerte - ET real”.

Pois eu confesso que tenho, em algum arquivo do computador, uma pequena coleção de insensatus resultados da minha recorrente ainamania. Coisas que eu vou juntando enquanto pessoas à minha volta participam de alguma reunião e me vêem atentamente anotando tudo, ou enquanto meus alunos fazem uma prova e imaginam que eu estou planejando a próxima aula.

Como, ao contrário do Laerte, eu não consigo desenhar nem mesmo uma vaca tossindo, posso tentar alguma coisa parecida através da ficção, ou coisa parecida: uma pequena situação em que se procure explicar a insensatez de ficar empurrando letras de um lado pro outro em busca de um fio de sentido. Eu poderia chamar este gênero de justificativas de “a sua causa”, se não for exagero.

Por exemplo.

No abafado verão de Verona, o amante declara que sua amada é tão bela que o próprio céu morreria por ela. E Julieta reclama: Ar, Romeu, que calor! Eu quero lá céu que morra?

Economistas selenitas discutem na academia os motivos de sua dependência externa: aula da dívida da lua.

Um menino perdido, tentando encontrar algum parente no meio da multidão: Oi, tu é meu tio?

A figurinista da nossa maior roqueira, depois de revirar o baú, encontra o tecido certo para a sua próxima criação: E ela tira daí a saia da Rita Lee.

E para terminar: num encontro de palindromistas (ou de poetas, ou de piadistas), o mais experiente tenta convencer um novato tímido a participar: Adorar palavras, usar: vá lá pra roda!