por Jorge Furtado
em 13 de abril de 2008
“A morte é o fato primeiro e mais antigo, e quase me atreveria a dizer: o único fato.”
Elias Canetti, A Consciência das Palavras.
Se não o único, a morte é nosso medo mais antigo. Para enfrentá-lo inventamos de tudo, a começar pela religião, onde nasceu o teatro. “Faz de conta que ele não morreu, que ele está vivo aqui, neste altar ou neste palco, faz de conta que eu sou ele, vejam!”
Faz de conta que você está só no mundo, completamente só, no meio da noite gelada, no alto de uma torre, e escuta passos. Afinal, você não está só. “Quem está aí?” O medo gela sua espinha: talvez seja um fantasma. O fantasma do pai - rei, chefe, sacerdote - foi nosso primeiro Deus.
“Quem está aí?” A morte não ser o fim é boa e má notícia. Fantasmas e deuses têm humor inconstante e, problema, não morrem. Mas talvez possam ser acalmados, com belos túmulos, flores, velas, quem sabe? O teatro nasceu destes ritos propiciatórios.
“Atenas tinha o festival de Antesteria, no fim de fevereiro, quando os fantasmas que no momento infestavam a cidade eram aplacados e banidos por meio de festins de danças dramáticas. A Noite das Bruxas, nos Estados Unidos, é uma sobrevivência deste costume”. *
Um velho truque humano para superar medos é o “desfazimento mágico” (para Freud, Ungeschehenmachen): já que não podemos derrotar a morte em vida, podemos derrotá-la em nossa imaginação.
“O homem primitivo nega a morte trazendo de volta o falecido sob a forma de espírito, e o rito do ancestral ou adoração do espírito converte-se numa representação dessa ressurreição. (…) Muitas das tragédias gregas (Édipo em Colona de Sófocles, Medéia de Euripídes) estavam relacionadas a rituais que louvavam um herói ou heroína primitivos.” *
Alguns destes rituais primitivos incluíam sacrifícios de animais, sua morte era oferecida aos deuses e, às vezes, sua carne era compartilhada para que os vivos absorvessem sua força. A morte do animal purgava os pecados, o “bode expiatório” morria por nós, para nos salvar. Pobre do bichinho! Para atenuar a culpa da morte de um caprino inocente, o sacerdote vestia sua pele (Ungeschehenmachen) e cantava, num renascer simbólico. Era o “canto do bode”, em grego “tragoedia”, tragédia.
A tragédia nasceu na Grécia e quase morreu na cruz: na ressurreição de Cristo nasceu sua igreja, cuja difusão no Ocidente quase acabou com o teatro: “Mais sofreu Cristo!”. Quase. O teatro renasceu, outra vez dentro da religião, na representação da vida dos Santos e da própria vida de Cristo, os Passos da Paixão que ornamentavam os altares laterais das igrejas viraram quadros vivos em ocasiões festivas.
Não por acaso o mais antigo texto preservado deste novo teatro cristão chama-se “Quem-quaeritis” (“A quem procurais?”, século IX), quase a mesma pergunta que abre o Hamlet. Os Anjos (metade do elenco) faziam a pergunta às Mulheres (outra metade do elenco) que visitavam o túmulo de Cristo. Elas respondiam: “Jesus de Nazaré, que foi crucificado”. A tréplica dos Anjos informava que Cristo não estava mais lá: conforme o anunciado, ascendera aos céus. “Ide e anunciai que ele ascendeu de seu sepulcro”. Cristo, o velho Rei Hamlet, Clitemnestra (que aterroriza Orestes, seu filho matricida), Duncan (rei da Escócia assassinado por Macbeth) e tantos outros fantasmas, recusam-se ao sepulcro.
Mas é bom lembrar que existe algo além da morte: a vida, este sim o fato primeiro. A maneira mais eficaz de enfrentar a morte é nascer e procriar, rituais de fertilidade são tão antigos quanto homenagens aos mortos. Ritos fálicos, orgias cerimoniais, festins sexuais existem em todas as culturas, desde sempre: o sujeito ou a sujeita se veste de bode, pirata, rei ou odalisca, bebe e se diverte por três noites e, na quarta-feira pede desculpas a todos no escritório, não sabe onde estava com a cabeça.
Destes rituais eróticos nasceu o avesso da tragédia, a comédia, “com sua imensa alegria e com o riso que silencia muitas ansiedades e dores de coração do espectador. A proverbial leviandade do palco é uma das suas mais antigas heranças; de forma sublimada é também um legado muito precioso”.*
Nascemos sabendo que morreremos, a vida é ótima mas, no fim, vai dar bode, é inevitável. Inevitável, mas não insuportável. Para suportar a vida, que termina em morte nas tragédias ou em casamento nas comédias, é que fazemos teatro.
* GASSNER, John. Mestres do Teatro I: tradução Alberto Guzik e J. Guinsburg, editora Perspectiva, 2007.
O Triunfo de Baco, de Claes Moeyaert. Na frente, vai o bode.