Já tinha feito essa pesquisa sobre a nacionalidade do Todo Poderoso na internet em janeiro de 2003, quando o filme do Cacá Diegues estava para estrear. Na época, encontrei 2.700 referências à expressão “Deus é brasileiro”. Hoje o Google registra nada menos que 58.600 vezes a frase, e certamente o Cacá, o Antônio Fagundes e o Wagner Moura têm a ver com isso, mas nem tanto: tirando da pesquisa a palavra “Diegues”, ainda sobram 45.600 páginas. Exclua-se ainda a influência do João Ubaldo, já que o conto em que o filme se baseou chamava-se “O Santo que não acreditava em Deus”.
Também podemos comprovar a preferência da Divindade pelo nosso País Tropical em outras línguas (e aí o filme e seu título talvez tenham um papel ainda mais importante): “God is brazilian” aparece 15.400 vezes, contra 1.820 “Dios es brasileño” e 1.560 “Gott ist Brasilianer”, mas (estranho) apenas 58 “Dieu est brésilien” e 28 “Dio è brasiliano”. E é bom lembrar, por respeito às minorias, que 1.020 páginas indexadas pelo Google afirmam que “Deus não é brasileiro”. Mas podem tocar o “Tema da vitória”, que ainda estamos ganhando por 58 x 1.
Não consegui encontrar a origem primeira dessa constatação a respeito d’Aquele que é. Foi Zweig quem disse que o Brasil era “o país do futuro” (e talvez por isso tenha se matado em Petrópolis), De Gaulle quem afirmou que o nosso “não era um país sério” (ou que “não era um país”, segundo as versões menos diplomáticas), Bastide quem popularizou a expressão “terra de contrastes” (isso quando ainda nem se media o coeficiente de Gini por aqui), mas não há um nome por trás da frase mais definidora da nossa nacionalidade. Quando o polonês Karol Wojtyla afirmou que “se Deus é brasileiro, o papa é carioca”, estava glosando um mote realmente popular, de domínio público. E o pior é que, aqui no Rio Grande do Sul, o pessoal encontrou uma rima bem mais ridícula.
Mas há controvérsias. O Google também localiza 10.800 páginas com a expressão “God is american” (ou 10.500 “God is an american”). Verdade que mais da metade delas (5.700) se referem à canção de David Bowie e Brian Eno, “I’m afraid of americans”, composta para a trilha sonora do filme “Showgirls” (1995) e mais tarde incluída no álbum “Earthling” (1997). Depois de afirmar que “I’m afraid of Americans / I’m afraid of the world / I’m afraid I can’t help it”, Bowie encerra sua letra com um refrão que é repetido 18 vezes, aparentemente para justificar o medo expresso no título: “God is an american!”
Se muitos brasileiros pensam que os hermanos do outro lado do Prata são a encarnação da pretensão e da megalomania, ao menos no quesito “identificação da nacionalidade do Altíssimo” nós ganhamos longe: não mais que 10.500 páginas da internet afirmam que “Dios es argentino” - e pelo menos 544 delas são menções da música com esse título gravada pelo grupo de rock “Los Villanos” em seu álbum de 2004, “Villanos al poder”. No caso, a letra parece mais saudosa ou rancorosa do que prepotente: “Dios es argentino y se mudó / no se que pasó / Dios es argentino y se rajó / Y atiende en Europa”.
Na segunda edição de sua obra “A Essência do Cristianismo” (1843), o filósofo alemão Ludwig Feuerbach havia notado que “Na verdade, o politeísmo deve permanecer enquanto houver nações. O Deus real de um povo é o ponto de honra de sua nacionalidade.” E justificava com exemplos: “Os cristãos alemães têm um Deus alemão, os espanhóis um Deus espanhol. (…) Os franceses têm inclusive um provérbio, ‘le bon Dieu est français’.” Mas o tal provérbio não sobreviveu à era da internet, ou cruzou o Atlântico durante o século XX: mesmo simplificando a pesquisa para “Dieu est français”, o Google registra apenas 17 páginas.
O embate entre a idéia universal do Deus único (ou do império único) e a fragmentação das nações ocidentais parece ter começado a assumir essa forma de “um Deus para todos, vá lá, mas com o meu sotaque” no século XVI, o das conquistas e descobrimentos, de Shakespeare e do calendário gregoriano. E é na Espanha que eu fui encontrar a sua referência mais antiga.
Gaspar de Guzmán, Conde-Duque de Olivares, era também comandante das tropas do rei Felipe IV de Habsburgo durante a Guerra de Flandres (1568-1648), contra as Províncias Unidas dos Países Baixos que lutavam por se independizar da Espanha. Quando a Invencível Armada finalmente obteve a rendição da cidade holandesa de Breda, Guzmán disse que “Dios es español y está de parte (está ao lado) de la nación estos días”. O episódio da “Rendição de Breda” seria retratado magnificamente por Velázquez: por reconhecer a heróica resistência dos holandeses, o vitorioso general Ambrosio de Spinola coloca a mão sobre o ombro de Justino de Nassau e o impede de se ajoelhar - pelo menos é assim que está no quadro.
Tá certo, isso aconteceu em 5 de junho de 1625, em pleno século XVII. Mas, ao lembrar a espanholice do Ser Supremo, o Conde-Duque estava se referindo a algo ainda mais espetacular, que havia acontecido 40 anos antes.
Em 7 de dezembro de 1585, eram os espanhóis de Francisco de Bobadilla que estavam sitiados, entre os rios Mosa e Wall, pelos holandeses do Almirante Holak, mas preferiram a morte certa à rendição. Holak abriu os diques e inundou o acampamento inimigo, obrigando os espanhóis a se concentrarem no pequeno monte Empel, onde passariam sua última noite antes do ataque final. Mas, ao cavar uma trincheira, um soldado de Bobadilla encontrou uma tábua flamenca com uma imagem da Imaculada Concepção. E, durante a noite, aconteceu o “milagre de Empel”: um vento muito frio e totalmente inesperado congelou o rio, os espanhóis marcharam sobre o gelo e surpreenderam os holandeses, vencendo a batalha. Foi o derrotado Holak quem reconheceu: “Tal parece que Dios es español al obrar, para mí, tan grande milagro”. Na história contada, até a língua dos vencidos é a dos vencedores.
Seja como for, quatrocentos anos depois, os espanhóis não parecem se lembrar muito disso: o Google registra apenas 347 vezes a expressão “Dios es español”.
Consideremos ainda 45 “Dios es mexicano”, 38 “Deus é português”, 34 “God is british”, 32 “Dios es colombiano”, 28 “God is irish”, 24 “Dios es venezolano”, apenas 12 “Gott ist Deutsch” e ridículos 4 “Dio è italiano” e a conclusão é uma só: Deus é estatisticamente brasileiro.
“La Rendición de Breda” ou “Las Lanzas”, de Diego Velázquez, 1636: na época, O Cara era espanhol.
TEM MAIS:
Videoclipe de I’m afraid of americans, por David Bowie.
Los Villanos cantando Dios es argentino.
Uma tradução em espanhol do livro de Feuerbach, “A Essência do Cristianismo”.