Três anos atrás, os irmãos Cristian e William Flores Silveira, então com 24 e 17 anos, inscreveram-se no Vestibular da UFRGS. As provas aconteceriam de 9 a 13 de janeiro de 2005. Como ambos queriam Engenharia Mecânica, seus exames seriam realizados no mesmo local, a Escola Estadual Leopolda Barnewitz, na rua João Alfredo, na Cidade Baixa. Os dois moravam em Alvorada, a 27 quilômetros dali. Cristian já estava cursando Mecânica na Unisinos, mas tentava uma vaga na Universidade pública. William fazia o seu primeiro vestibular.
Numa das provas, eles saíram tarde de casa. O trânsito estava engarrafado e eles corriam o risco de chegar à escola depois das 8h30, quando o portão seria pontualmente fechado, de acordo com o regulamento do Vestibular. Mas ainda faltavam alguns minutos, a distância não era muito grande, e eles resolveram descer do ônibus na avenida Loureiro da Silva e correr.
Dois policiais militares numa viatura e um terceiro a pé acharam que aqueles dois jovens, correndo daquele jeito num bairro residencial de Porto Alegre àquela hora da manhã, estavam em “atitude suspeita” e resolveram abordá-los. Cristian e William explicaram por que estavam com pressa, mas não escaparam de uma revista e das perguntas de rotina. Quando os policiais perceberam que eles falavam a verdade, gentilmente acompanharam os dois até a escola, mas já era tarde.
Cristian e William, dois jovens negros, perderam o vestibular de 2005 da UFRGS por causa de um mal-entendido.
Muitas pessoas são contra a política de cotas na Universidade. Algumas, inclusive, por motivos bastante razoáveis. Outras, por defenderem a tese de que não existiria preconceito racial no Brasil, que o preconceito seria sempre e acima de tudo uma questão de classe e não de cor. Aparentemente, Cristian e William são jovens de classe média: segundo as notícias veiculadas na época, o pai deles, Norberto Silveira, é engenheiro e, ao menos por um tempo, conseguiu pagar um curso caro numa universidade privada para o filho mais velho.
Não sei o que aconteceu com a família Flores Silveira depois disso. O episódio não teve seguimento, a notícia não foi tão espetacular que merecesse figurar nas retrospectivas de fim de ano. Fico imaginando se Cristian e William entraram na UFRGS no ano seguinte, se desistiram de seguir a profissão do pai, se foram finalmente favorecidos pelas cotas em 2008 ou se nem precisaram disso para chegar à Universidade.
Para mim, uma política de cotas como a que está sendo implantada no Brasil é uma tentativa, imperfeita que seja, de reparar injustiças. Não só as barbaridades cometidas no período da escravidão, mas também os mal-entendidos que seguem acontecendo ainda hoje. Um pedido público de desculpa de uma sociedade mestiça, mas que sempre acha que os negros é que são os suspeitos. Um pouco de vergonha na cara por até aceitar que eles dividam conosco a mesma calçada, que até andem na mesma direção - mas devagar, sem correr! Uma mínima reparação por admitir que, todos esse anos, nós temos feito de tudo para que eles não tentem passar na nossa frente.
TEM MAIS:
Matéria da Folha Online de de 14/01/2005 sobre o episódio.
Localização da Escola Estadual Leopolda Barnewitz, onde ocorreu o episódio (e onde eu estudei, entre 1963 e 1967).
Entrevista com o professor Marcelo Paixão, da UFRJ, sobre política de cotas.