por Giba Assis Brasil
em 13 de junho de 2008
Neste início de junho, o Escritório Central de Arrecadação de Direitos voltou às manchetes de Brasília e do resto do país. Um projeto de lei do Senado (PLS 532/03) pretende isentar as salas de cinema de pagar direitos autorais sobre as músicas executadas nos filmes. E o exército de 80 advogados do ECAD entrou em ação, mobilizando todos os recursos possíveis (inclusive alguns músicos que se prestam pra isso) tentando impedir a votação do projeto. Tudo de novo.
Em março do ano passado, quando um assunto semelhante surgiu numa lista de discussão de cineastas, eu enviei uma mensagem que, relendo agora, me pareceu insuportavelmente atual. Segue abaixo, tirando apenas os nomes das pessoas com quem o diálogo se estabeleceu.
A argumentação em defesa do ECAD e sua lógica de arrecadação é sempre a mesma: “a lei diz isso”. (Mal comparando, era assim que o Visconde de Barbacena defendia a cobrança do quinto e a aplicação da derrama sobre a população de Vila Rica no final do século 18.)
Na minha opinião, a questão deveria ser colocada assim: é JUSTO que um escritório privado, em nome do conjunto dos músicos do país, fique com 2,5% da renda bruta de uma atividade econômica que envolve dezenas de categorias profissionais e que, neste país, na maior parte do tempo, é uma atividade deficitária e mantida basicamente por subsídios públicos? (Conta a História que, lá nas Minas Gerais, um certo Joaquim José, um certo Cláudio Manuel, um certo Tomás Antônio acharam que a lei não era justa e tentaram mudá-la, mas eu também não quero me estender muito nessa comparação um tanto forçada.)
A lei diz que, quando o produtor de um filme contrata um músico, ele paga apenas pelo direito de sincronização da obra musical com a obra audiovisual. E que, a partir daí, sempre que o filme for exibido, gerará direito autoral pela execução pública da obra. Me parece justo. Quem poderia dizer que não é justo?
Mas o mesmo raciocínio pode ser feito com relação a todos os outros artistas envolvidos na realização do filme. O ator contratado para fazer o filme permite que sua imagem e sua interpretação sejam captadas pela câmara, mas a exibição do filme gera nova necessidade de pagamento do ator. Justo. O roteirista permite que seu roteiro seja filmado; mas, se o filme algum dia for exibido, o roteirista deverá ser pago de novo. Justíssimo. O mesmo em relação ao argumentista, ao diretor de fotografia, ao montador, ao editor de som, ao diretor. E o produtor? E o diretor de arte? E os cenógrafos, figurinistas, maquiladores, criadores de efeitos especiais? Onde acaba essa lista? Quem determina quais os seus limites?
Quando o assunto é colocado desta forma, a resposta costuma ser: não é responsabilidade dos músicos se as demais categorias não são organizadas. E nós, desorganizados cineastas, terminamos aceitando essa culpa. Mas será que é assim mesmo?
Vamos pensar matematicamente: se o responsável pela criação da música de um filme merece 2,5% da renda bruta (e quem sou eu pra dizer que não merece?), quanto merece o diretor? E o roteirista? E o ator e a atriz principais? E os atores e atrizes secundários? E os demais artistas e técnicos? Não, a lei é clara, “técnico” não gera direito autoral, só “artista”. Mas quem sabe definir com precisão que funções são “apenas técnicas” no cinema? Um bom operador de grua não pode contribuir, em alguma medida, para a criação de um filme?
Façam este exercício: partindo dos 2,5% dos músicos, atribuam um percentual para cada função cinematográfica que vocês julguem merecedora de direito autoral, depois somem tudo: quem conseguir fechar o total em menos de 50% ganha de presente uma coleção de CDs piratas. Agora imaginem a viabilidade econômica de uma atividade em que 50 ou 60% (quem sabe 75%?) da renda bruta estejam sempre, em qualquer circunstância, comprometidos com o - justo, justíssimo - pagamento de todas as suas múltiplas autorias.
O “maldito” projeto da Ancinav propunha, entre outras idéias inovadoras, reservar 1% da renda bruta de qualquer exibição de qualquer produto audiovisual para pagamento de TODOS os detentores de direitos autorais. Parece pouco? De qualquer maneira, pela primeira vez, teríamos que aplicar o raciocínio contrário: como dividir, da maneira mais justa possível, este bolo? (Ou, por outro lado, como argumentar para aumentá-lo?)
Na época, eu era membro do Conselho Superior de Cinema. E, por isso, recebi páginas e páginas de protestos contra a “inconstitucionalidade” daquele item (era o artigo 129 do anteprojeto da Ancinav): advogados, membros de sociedades arrecadadoras, todos falando em nome dos músicos - e do ECAD, naturalmente. Como alguém já lembrou, trata-se de uma enorme e poderosa estrutura burocrática mantida pela circulação de muito dinheiro. Como também foi salientado, um dinheiro que nem sempre chega aos músicos.
O depoimento de quem tentou criar uma entidade semelhante ao ECAD para os diretores e roteiristas é contundente: não é viável instituir um organismo desse tamanho se o valor total a administrar for pequeno - ou, pior, se não houver como saber qual é o total a administrar. Daí a dificuldade até de imaginarmos uma sociedade arrecadadora para os diretores, outra para os fotógrafos, outra para os atores, etc.
Na atual situação, a única coisa que nós sabemos é que 2,5% da renda bruta vão para o ECAD. E aí, me desculpem, mas a comparação histórica “forçada” lá do início volta a fazer sentido: não se trata mais de legalidade ou de justiça, ou mesmo de organização de classe, mas apenas de quem chegou primeiro, e por isso tem um lobby suficientemente forte para fazer valer os seus direitos ou privilégios: ESTÁ NA LEI. Quem não concordar que coloque o pescoço a prêmio, como Tiradentes. Quem não pagar vai ter que se ver com o Visconde.
TEM MAIS:
Notícia da Agência Senado: a mobilização do ECAD contra o PLS 532/03.
Matéria do Overmundo sobre a recente disputa entre o ECAD e o músico Tim Rescala.
Calcule quanto você tem que pagar pro ECAD se quiser fazer uma festa de São João no seu coleginho. E não adianta dizer que a escola é pública e que as professoras estão se cotizando pra comprar a rapadura e a pipoca. Lei é lei!