por Giba Assis Brasil
em 28 de julho de 2008
Segundo o Dicionário Michaelis, “spoil” pode ser substantivo, significando espólio, presa de guerra, pilhagem, saque. Como verbo, “spoil” é saquear, pilhar, roubar, mas também estragar, frustrar. “A spoiled child” é uma criança mimada, uma má notícia pode “spoil my appetite”. No plural, “spoils” são cargos, posições preenchidas por protegidos políticos - sim, existe uma palavra para isso em inglês! E existe inclusive um “spoil system”, no sentido de distribuição gratuita (duvido que o Milton Friedman aprove o termo) de cargos e privilégios. “Spoiler” é aquele que estraga ou destrói. E “spoil-sport” é a ação repetida de quem vive “spoiling”, conhecido como “desmancha-prazeres” em Portugal ou “mala-sem-alça” no Brasil.
Na internet, “spoiler” virou um desses termos que todo mundo percebe que veio do inglês mas ninguém sabe exatamente por quê, e que é usado sempre na língua original por um misto de reverência e preguiça - assim como “delete”, “download”, “newsletter”, etc. Pensando bem, “et caetera” é latim, mas isso já é outra história.
Quando um site tem um banner ou mesmo um simples warning na sua homepage com a palavra “spoilers” (quase sempre assim, no plural, sei lá por quê), significa que estamos na presença de possíveis e indesejáveis revelações sobre o enredo de um filme (ou programa de TV, livro, peça de teatro, quadrinhos, qualquer coisa que tenha narrativa). E que, se você ainda não viu aquele filme ou etc, deve fugir dali como o ex-fumante foge da Souza Cruz, sob pena de ter seu prazer estragado, pilhado, espoliado.
E mais: dentro da nossa atual cultura do politicamente correto, o leitor teria o direito de ser avisado antecipadamente da ocorrência de spoilers em um texto crítico ou analítico; caso contrário, o dano causado (a impossibilidade de assistir ao filme sem conhecer o seu final) seria irreparável, o que poderia resultar num processo judicial. O crítico que escreve sobre “Titanic” e menciona o acidente, assim como o padre que comenta o Novo Testamento e revela o que acontece afinal com o protagonista, seriam, nessa óptica, tão criminosos quanto o laboratório que vendeu as pílulas anticoncepcionais de farinha, ou a empresa alimentícia que não colocou no rótulo o aviso de que seus biscoitos continham glúten.
Tradicionalmente, aceitava-se a existência de dois tipos de textos sobre filmes: as resenhas, curtas, informativas, que só contavam o que acontecia nos primeiros minutos; e as críticas, que por sua própria natureza terminavam revelando fatos do enredo, mesmo as viradas surpreendentes ou os finais inesperados. Não é que as críticas só pudessem ser lidas por quem já viu o filme, mas o leitor da crítica sempre soube onde estava se metendo, e não se preocupava muito com isso. Eu, por exemplo, quase nunca acho que esteja perdendo muito ao saber como um filme termina; e, se estiver perdendo, é porque o filme não vale grande coisa mesmo.
Mas, de umas décadas pra cá (e eu estou longe de ser o primeiro a falar nisso), a separação entre resenha e crítica se diluiu: algumas resenhas viraram resumos da história completa, do início ao fim; as “informações de bastidores” (inclusive o velho quem-comeu-quem) invadiram muitos textos pretensamente analíticos; e, cada vez mais, confunde-se crítica com achismo, análise aprofundada com quantidade de adjetivos, o ponto de vista do crítico com o sabor da bala azedinha que o acompanhou na sessão.
Como já não se sabe mais a diferença entre resenha e crítica, o público passou a fugir de ambas - quase sempre com razão, ainda que pelas razões erradas. E passou a sobrevalorizar informações que dizem tudo sem dizer nada, como uma classificação de gêneros crescentemente detalhada (“comédia romântica interracial pós-punk”) ou um sistema de cotação mais ou menos sofisticado (das “três estrelinhas e um quinto” ao “bonequinho gostou tanto que nem saiu pra fazer xixi, apesar das três horas de projeção”) ou ainda o velho argumento de autoridade, pra que o espectador saiba com quem está falando (“dos mesmos eletricistas de ‘A Guerra dos mundos’”). Já é informação suficiente pra quem vai ver o filme, e muitas vezes não é muito menos do que o espectador tem ao sair do cinema.
Mas se eu for escrever sobre “Branca de Neve” e não conseguir evitar de mencionar os sete anões (afinal, uma virada na história, a grande contribuição dos roteiristas da Disney ao tradicional conto fixado por Perrault), tenho que avisar o incauto leitor: “Cuidado! Spoiler! Não leia na frente das crianças e, antes de prosseguir, desista da sua inocência.”
Ou então a crítica não serve pra nada.
As rosquinhas Pretzel têm orgulho de espoliar o jantar do pessoal há 20 anos.
TEM MAIS:
A advogada Julie Hilden comenta as revelações de enredo do filme “Menina de ouro”.
Um sítio chamado “The Movie Spoiler” se diverte em contar o final de todos os filmes em cartaz.
Ler crítica não é uma questão de concordar ou não com ela.
COMENTÁRIOS
Enviado por joana brea em 29 de julho de 2008.
adorei o texto mas fiquei com pena de vc não ter elaborado mais a parte do etecétera. Não sou especialista mas será que é outra história mesmo? ok, a incorporação de termos latinos em uma lingua latina parece mais apropriada do que terminologias anglicistas mas tudo me parece colonização, não? parabéns pelo blog, voltarei sempre.
Enviado por Giba em 29 de julho de 2008.
Tem razão, Joana. Por isso é que eu acho que é outra história. Mas agora você já elaborou o que eu deixei de elaborar. Volte sempre.