Wikiacaso

por Giba Assis Brasil
em 07 de setembro de 2008

“Para lutar contra o pragmatismo e a horrível tendência à consecução de fins úteis, meu primo mais velho defende a prática de arrancar um bom fio de cabelo da cabeça, dar-lhe um nó no meio e deixá-lo cair suavemente pelo buraco da pia.”

Assim começa a “Perda e recuperação do cabelo”, um dos mais geniais e absurdos capítulos de “Histórias de cronópios e de famas”, que Julio Cortázar escreveu em 1962, e que foi publicado dois anos depois em português, pela Civilização Brasileira, com tradução de Gloria Rodríguez. Meu exemplar é de 1978, e está todo manchado de café, outra história em que a banalidade e o absurdo se misturam, mas que não vem ao caso.

O fato é que, trinta anos depois de ter lido esta frase pela primeira vez, sigo tentando contrariar a “horrível tendência” identificada pelo primo do narrador-cronópio, principalmente nos momentos de mais pressão e compromisso com os tais “fins úteis”, e ainda assim conseguir pagar as contas no fim do mês.

Em vez de jogar cabelos marcados na pia e depois tentar encontrá-los, eu atualmente me dedico à “página aleatória” da Wikipédia. É fácil: é só entrar em http://pt.wikipedia.org e sortear uma página qualquer (alt-shift-X no Firefox, alt-X no Explorer, command-X no Macintosh). Em português, hoje, são 426.461 artigos, o que significa que eu posso praticar 39 vezes por dia durante 30 anos antes de esgotar as possibilidades - e é claro que até lá a Wikipédia já vai ser bem maior.

Graças a essa prática, já tive acesso a informações bastante desinteressantes sobre diversos tipos de Pókemons, condados dos EUA e vilas da Índia, asteróides da cintura principal (ainda não encontrei nenhum de outra cintura que não a principal, mas não desisto tão fácil), insetos, orquídeas, personagens de RPG e até mesmo dubladores de desenho animado.

De vez em quando, caio num artigo sobre cinema, futebol ou literatura, assuntos sobre os quais todo mundo tem opinião, inclusive eu, e então leio com mais atenção para ver se eu não posso acrescentar ou corrigir alguma coisa. Às vezes é só um erro de ortografia ou de pontuação, muitas vezes uma tradução mal feita ou uma bibliografia incompleta, mas tem também os casos de textos escolares, mal escritos ou completamente sem noção, que é preciso reescrever do início. E é o que eu faço, principalmente quando as tarefas do mundo real são muitas e urgentes.

Mas o melhor de tudo é quando eu topo com um tema que eu desconheço, e mesmo assim percebo que o artigo pode ser melhorado. Foi dessa forma que eu reescrevi verbetes sobre, por exemplo, um episódio da Bíblia, um esporte praticado no Afeganistão, um problema de teoria dos números e também (que vergonha!) a trajetória de um grupo de pagode.

Em julho do ano passado, caí na biografia de um rabino italiano do século XVI. Achei a história dele interessante, mas com muitos furos. Li o verbete da Wikipédia em inglês, procurei outras referências na internet e nas enciclopédias de papel que eu ainda tinha em casa e terminei reescrevendo todo o artigo. Hoje, se alguém digitar o nome do sujeito no Google (o que eu duvido que aconteça), a primeira página que vai aparecer é justamente o verbete sobre ele da Wikipédia lusófona, com minha decisiva e totalmente inútil contribuição.

Se eu fosse um cronópio do Cortázar, poderia meditar:

“É tarde, mas menos tarde para mim do que para os famas, para os famas é cinco minutos mais tarde, chegarão a suas casas mais tarde, se deitarão mais tarde. Eu tenho um relógio com menos vida, com menos casa e com menos deitar-me, eu sou um cronópio infeliz e úmido.”

Mas também não é o caso.

Julio Cortázar (1914-1984) não chegou a conhecer a Wikipédia (2001).


TEM MAIS:

Entrevista de Julio Cortázar para a TVE espanhola (1977), deixando de explicar o que são cronópios.

Uma página aleatória da Wikipédia lusófona.

Um rabino italiano do século XVI.


COMENTÁRIOS

Enviado por Alfredo Barros em 14 de setembro de 2008.

Muito legal esse texto. Tive dificuldade para ler no Firefox do Mac, pois aquela barra com os dizeres “encha seu carrinho de cultura” me impediu de ler a frase inicial, justamente a citação ao Cortázar. Esse problema provavelmente tem a ver com o pragmatismo do webdesigner, que deveria ler mais a wikipédia ou arrancar e dar nós em todos os cabelos antes de entregar o site pronto. Bastaria testá-lo em outros sistemas operacionais, outros browsers, etc. No meu caso, a última coisa que eu faria seria clicar naquela barra. Se ao menos houvesse um botãozinho pra fechar temporariamente a barra, ou com os dizeres “leia o que está aqui embaixo”, daria pra aproveitar melhor a leitura e depois encher o carrinho de leitura. Aliás, queria aproveitar pra te pedir pra atualizar minhas funções na área de colaboradores da Casa. Queria substituir a função de assistente de direção pela de Montador. Acho que deve ser mais fácil do que atualizar a biografia do rabino italiano… hehehe!

Aliás, eu li o artigo sobre o Abraham Yagel! Parece coisa inventada, tipo Código Davinci! Abs, Alfredo.

Enviado por Cesar Brod em 26 de setembro de 2008.

Giba, se alguém ainda achava que tu não era um nerd, depois deste artigo já não resta mais dúvida alguma! Abração!