Sofia e o encanador

por Giba Assis Brasil
em 20 de outubro de 2008

Para quem se escreve? Que espectador se tem na cabeça quando se faz um filme? Em que ouvinte pensamos quando escolhemos cada uma das palavras e definimos cada uma das pausas que compõem uma piada? Que tipo específico de peixe se busca quando se escolhe um anzol, uma isca, uma certa maneira de jogar a linha na água?

Sinceramente, eu nunca gostei de pescaria, nem mesmo como metáfora. Mas a propaganda e o marketing político falam em “público-alvo”, uma imagem ainda mais agressiva, que tem a ver com armas de fogo, ou no mínimo com arco e flecha. Mesmo que eu vá falar de imagens em movimento, prefiro buscar na literatura (e mais precisamente em Umberto Eco) o conceito de “leitor modelo”, aquele “capaz de se movimentar interpretativamente [no texto] conforme [o autor] se movimentou gerativamente.”

Mesmo antes de termos lido “Lector in fabula”, já havia uma espécie de consenso entre nós, da Casa de Cinema, a respeito da construção de nosso leitor-modelo: algo como “fazemos filmes que nós gostaríamos de assistir”, o que é completamente diferente de “fazemos filmes para nós mesmos”, ou pior, “faço filmes para mim mesmo”. Levando o raciocínio para o singular, quando eu estou montando um filme, meu leitor modelo não sou eu que estou montando, mas um outro eu (ou alguém muito parecido comigo) que estaria assistindo ao filme pela primeira vez, com as principais informações disponíveis sobre o tema, com a mesma percepção que eu sobre o estado da linguagem audiovisual naquele momento, mas com o olho suficientemente virgem para desconhecer o processo que levou ao filme. Um exercício de esquizofrenia complicado, mas que eu considero essencial para uma relação saudável com o trabalho e com o público.

Pois é, o público.

Entre 1992 e 2000, a Casa de Cinema foi responsável pelos programas de TV de cinco campanhas políticas. No decorrer de uma delas (acredito que em 1994), numa reunião com a coordenação de campanha, um dirigente do PT nos explicava os resultados de uma pesquisa qualitativa que deveria orientar nosso trabalho no segundo turno: “Nosso público-alvo, o eleitor indeciso, é mulher, tem de 30 a 40 anos, é dona de casa, tem o primário completo…” E o Jorge Furtado completou: “E se chama Sofia.”

Identificar uma entidade tão extensa e multiforme como “o público” pelo nome de um indivíduo ou pela caracterização de um grupo específico é uma forma de sinédoque, aquela figura de linguagem em que se substitui a parte pelo todo, o gênero pela espécie, a matéria pelo objeto, etc. E esta sinédoque particular, do público por sua representação simplificada, deve ser tão antiga quanto mijar em praça pública, e mais variada.

Na imprensa italiana, fala-se muito nas “casalinghe di Voghera”, donas de casa de uma cidadezinha de 40 mil habitantes, 50 km ao sul de Milão. Segundo Umberto Eco (“Cinco escritos morais”, editora Record, 1997, p. 59), a expressão foi criada a partir de uma pesquisa realizada nos anos 1960 pela “Servizio Opinioni della RAI”, que tentava justamente criar uma linguagem para o noticiário político na televisão que fosse compreensível pela maioria dos italianos.

Aqui no Brasil, nos anos 1980, explicava-se a autocensura na televisão como uma exigência das “senhoras de Santana”, moradoras de um bairro tradicional da zona norte de São Paulo. Mais recentemente, em novembro de 2005, William Bonner, falando a um grupo de professores da USP em visita à TV Globo, definiu Homer Simpson como o espectador padrão do Jornal Nacional. Não sei quem criou a expressão “afegão médio” (a primeira vez que a ouvi foi do cineasta paulista Cecílio Neto), mas ela perdeu o significado de “povo desconhecido e distante” ou de “média da ingenuidade e da ignorância” depois que a invasão de Cabul apareceu ao vivo na tevê em outubro de 2001.

E tem ainda o Jeca Tatu de Monteiro Lobato e o Jeca Total de Gilberto Gil, a maioria silenciosa e a “moral majority”, a Velhinha de Taubaté e a velhinha surda da última fila. E até mesmo o atualíssimo “Joe, o encanador”, a mais nova encarnação do “americano médio” que, segundo John McCain, seria prejudicado pela política democrata de um eventual governo Barack Obama - e que acabou se revelando uma fraude, um sonegador de impostos que sequer é encanador, mas parece que realmente se chama Joe.

Mas a Sofia, que o Jorge nomeou quase por acaso, no meio de uma frase, provavelmente sem tempo de lembrar que significa “sabedoria” em grego, já era leitora modelo há mais de dois séculos. Alguns anos depois da tal reunião, lendo o “Discurso sobre a poesia dramática” que Denis Diderot escreveu em 1758 (minha edição é de 1986, da Brasiliense) encontrei o seguinte trecho (p. 40):

“Ao escrever, deve-se ter em vista a virtude e as pessoas virtuosas. Quando tomo da pena, sois vós, meu amigo, que evoco e, quando ajo, sois vós que tenho diante dos olhos. É a Sofia que pretendo agradar. Se me sorrirdes, se ela derrama uma lágrima, se ambos me têm mais afeição, sinto-me recompensado.”

Segundo o tradutor L.F. Franklin de Matos, “trata-se de Sophie de Volland, com quem Diderot manteve relações amorosas e trocou uma farta correspondência, que se estendeu por aproximadamente trinta anos”.

Simplificando: de Diderot a McCain, quando queremos emocionar, nos dirigimos às pessoas virtuosas como as que pretendemos ser (e a Sophie); quando queremos persuadir, miramos no afegão encanador (e em Sofia). Mas há muitas outras simplificações possíveis.

O público deve ser encarado como alvo ou como modelo?


TEM MAIS:

*Algumas cartas de Diderot a Sophie foram publicadas em português na coleção Clássicos Jackson. Quatro delas foram transcritas no sítio Consciência.org.

*A Wikipédia em italiano tem um artigo sobre as donas de casa de Voghera, mas ignora a explicação de Umberto Eco para a origem da expressão.

*Na quinta-feira 16/10/2008 “Joe the Plumber” (Joe o encanador) foi a 7ª expressão mais pesquisada no Google.


COMENTÁRIOS

Enviado por Henrique em 21 de outubro de 2008.

Na política não sei mas na arte (também não sei) a idéia de público alvo é perigosa. Aproximar a arte de publicidade é sempre um complicado, arriscado e estrnho (ainda que em algum ponto não estejam tão distantes). Penso que ao fazer a arte, pensar no público (buscar uma comunicação, uma conexão) é algo natural, algo que vejo até como necessário mas isso não quer dizer pensar no público como alguém a ser convencido, a ser agradado a qualquer custo. Mas acho que uma obra só faz sentido quando encontra o público. Encontra, no sentido quase literal mesmo. Uma obra só fica completa quando chega até ele.

Enviado por Álvaro Magalhães em 24 de outubro de 2008.

Nesta campanha municipal de Porto Alegre o alvo de vários foi representar o novo ou a mudança. Mudança em relação ao quê? À gestão medíocre atual ou à adminsitração popular? Sem saudosismo, se algum candidato defendesse a Adm Popular teria meu apoio, não só o voto (que é obrigatório, especialmente para os barnabés).

Enviado por giba em 26 de outubro de 2008.

Concordo, Alvaro. Foi no mínimo estranho ver que o candidato da situação era quem mais falava em Orçamento Participativo.