por Jorge Furtado
em 02 de junho de 2009
Não engulo esta onda moralista sobre a suposta “pornografia” dos textos dos livros didáticos paulistas. Já li um abobado chamando Manoel de Barros de pornográfico, cruzes. Episódio semelhante aconteceu em Porto Alegre, na primeira prefeitura petista, que apoiou a publicação de uma excelente revista em quadrinhos (Dum-Dum) e levou pau da direita que julgava a revista indecente.
Agora é a esquerda que bate em Serra por causa de uma frase de um poema de um livro “não ame, estupre”. Não li o livro mas me parece que o contexto da frase era o da ironia. Frases pinçadas de Hamlet ou Macbeth podem parecem pornografia ou incitação ao crime.
Este discurso moralista é assustador, é o que a esquerda tem de pior.
(Texto publicado no blog do Nassif, 31/05/2009 - 18:36, com o título Livros didáticos e moralismo)
(comentários)
31/05/2009 - 20:02 Enviado por: Jorge
É claro que deve haver critério para a escolha de livros para cada série e cada idade, mas o caso está sendo tratado com evidente exagero, num moralismo que une, ao que parece, leitores do Estadão e deste blog.
De minha parte, acho ótimo que crianças de 11 e 12 anos leiam Manoel de Barros. A poesia pode servir de contraponto às toneladas de pornografia que a internet e a televisão certamente já despejaram sobre elas a esta altura da vida.
A questão legal (contratos milionários, lobby de editoras, etc.) não pode ser confundida com a questão pedagógica (ou psicológica, ou ainda estética). Esta mistura de moralismo e ideologia dá medo.
Neste poema de Manoel de Barros, por exemplo, alguém pode pinçar momentos de zoofilia e crueldade contra crianças. Afinal, o céu do sapo tem o tamanho da boca do poço. Ou, como disse o próprio poeta, “Coisa que não acaba no mundo é gente besta e pau seco”.
Jorge Furtado
DIÁRIO DE BUGRINHA (Excertos)
Manoel de Barros
22.1.1925
O nome de um passarinho que vive no cisco é joão-ninguém. Ele parece com Bernardo.
23.2
Lagartixas têm odor verde.
2.3
Formiga é um ser tão pequeno que não agüenta nem neblina. Bernardo me ensinou: Para infantilizar formigas é só pingar um pouquinho de água no coração delas. Achei fácil.
23.2
Quem ama exerce Deus - a mãe disse. Uma açucena me ama. Uma açucena exerce Deus?
2.3
Eu queria crescer pra passarinho…
5.3
A voz de meu avô arfa. Estava com um livro debaixo dos olhos. Vô! o livro está de cabeça pra baixo. Estou deslendo.
5.6
O frio se encolheu nos passarinhos. Ó noite congelada de jacintos! Eu estou transida de pétalas.
7.8
O pai trouxe do campo um filhote de urubu. Ele é branco e já fede.
12.8
As garças descem nos brejos que nem brisas. Todas as manhãs.
10.9
Um sapo feneceu 3 borboletas de uma vez atrás de casa. Ele fazia uma estultícia?
13.9
A mãe bateu no Mano Preto. Falou que eu não apanhava porque não dei motivo. Subi no pico do telhado para dar motivo. Aqui de cima do telhado a lua prateava. A mãe disse que aquilo não era motivo.
19.9
Uma égua iniciava meu irmão. O pai ralhou com ele. Meu irmão foi entrando para inseto até desaparecer. Ficou dentro do mato até amanhã.
1.1
O Bernardo fala com pedra, fala com nada, fala com árvore. As plantas querem o corpo dele para crescer por sobre. Passarinho já faz poleiro na sua cabeça.
2.2
A mãe disse que Bernardo é bocó. Uma pessoa sem pensa.
5.2
Sem chuvas, já reparei, as andorinhas perdem o poder de voar livres.
29.2
Hoje o Lara morreu picado de cobra. Fizeram seu caixão de costaneiras. Meu avô encostou no caixão. Ué, eu que morri e quem está no caixão é o Lara! Meu avô enxergava mal.
2.1.1926
Catre-Velho é um ser confortável para moscas. Ele nem espanta algumas.
12.1
Choveu de noite até encostar em mim. O rio deve estar mais gordo. Escutei um perfume de sol nas águas.
1.3
As árvores me começam.
1.4
Uma violeta me pensou. Me encostei no azul de sua tarde.
10.4
Os patos prolongam meu olhar… Quando passam levando a tarde para longe eu acompanho…
21.4
Pensar que a gente cessa é íngreme. Minha alegria ficou sem voz.
22.4
Hoje completei 10 anos. Fabriquei um brinquedo com palavras. Minha mãe gostou. É assim:\
- De noite o silêncio estica os lírios.
Extraído do “Livro Sobre Nada” (Arte de Infantilizar Formigas), Editora Record - Rio de Janeiro, 1996, pág. 29.
31/05/2009 - 21:43 - Enviado por: Jorge
O brilhante escritor e respeitável pornógrafo Dalton Trevisan disse uma vez que para se começar um debate é uma boa idéia ter como ponto de partida aquilo com que todos concordam.
Imagino que todos concordam que contratos públicos devam seguir critérios claros, transparentes. Imagino que todos concordam que uma criança de 9 anos não deve ser estimulada a ler livros onde personagens debatem se alguém dá o cu ou chupa rola, por favor, sem acento.
Dito isso e, para avançar na conversa, não vejo problema algum em estimular uma criança de 11 ou 12 anos a ler poemas de Manoel de Barros, usem estes poemas as palavras que quiserem.
Jorge Furtado
Os livros da Secretaria da Educação
02/06/2009 - 08:00 - De Maringoni
Caros e caras:
Houve uma razoável repercussão na imprensa, há duas semanas, sobre uma suposta cartilha com palavrões e conteúdo pornográfico que a Secretaria de Educação dos Estado de S. Paulo teria distribuido a alunos de 3a. série do ensino público. A situação mereceu uma campanha moralista por parte de certos órgãos de imprensa, a Globo em primeiro lugar.
Devo dizer que o caso é um tanto diverso do apregoado. A “cartilha” é na verdade um livro de quadrinhos, editada pelo Orlando Pedroso, ilustrador da Folha, e dela fazem parte 11 cartunistas, entre eles Spacca, Lelis, Fabio Moon, Gabriel Bá, Osvaldo Pavanelli, Caco Galhardo e este locutor que vos fala. Trata-se de um álbum, dirigido ao público adulto, lançado por ocasião da Copa de 2002.
A escolha e a compra pela Secretaria se deu totalmente à nossa revelia. Houve um claro equívoco da parte do governo estadual. O moralismo indignado da mídia é tão verdadeiro quanto uma nota de três reais.
Envio a vocês, anexo, a cópia de minha história lá publicada.
Meu comentário:
Alô Maringoni
Excelente trabalho, parabéns. Como é o nome do livro e como faço para comprar? Qual a editora?
Parabéns ao governo Serra por ter propiciado aos alunos da rede pública paulista um trabalho desta qualidade. Se a leitura for inadequada para crianças de 9 anos (talvez seja) não há problema algum, elas vão crescer, podem esperar para ler aos 11 ou 12. Enquanto isso, que os livros sejam lidos por crianças mais velhas.
Questões legais (contratos, concorrências, etc.) não devem ser confundidas com análise da qualidade das obras. Isso acaba em anedota, como a do meganha da ditadura (dita branda) que prendeu um sujeito por estar lendo Memórias Póstumas de Bras Cubas.
O estrabismo ideológico que cola o rótulo de pornográfico em Manoel de Barros é o mesmo que faz a Folha não reconhecer que a ficha de Dilma e o grampo Veja-Demóstenes-Gilmar nunca existiram.
Por falar em pensar, recomendo fortemente a leitura de “O Espírito das Luzes”, do Todorov. Obra-prima de simplicidade e lucidez.
Jorge Furtado
Texto originalmente publicado no jornal “Zero Hora” em 2 de junho de 2009
Will Eisner para todos
Cineasta Jorge Furtado contesta a origem das polêmicas sobre “inadequação” de obras literárias para estudantes
Chegou ao Sul a polêmica dos livros ditos “pornográficos” adquiridos pelo Programa Nacional de Bibliotecas nas Escolas (PNBE), do governo federal. Boa matéria de Marcelo Gonzatto em Zero Hora (sexta-feira, 19/6/09, pág. 50) informa que “esta semana, quando chegou uma nova remessa ao Estado, uma escola de Alvorada relatou à SEC que considerava as obras de (Will) Eisner impróprias”. A Secretaria Estadual da Educação, segundo a matéria de ZH, mandou “remover das estantes três livros do autor norte-americano Will Eisner por serem ‘inadequados’ para adolescentes”.
É uma pena. As obras em questão são três novelas gráficas, em quadrinhos, escritas e desenhadas por Will Eisner. Não li O Jogador, mas afirmo que Um Contrato com Deus (Editora Brasiliense, 1988) e O Nome do Jogo (Editora Devir, 2003) são obras-primas de um grande artista, e seria um grande serviço da escola pública gaúcha disponibilizá-las aos seus alunos.
A matéria de Zero Hora tem como título uma pergunta: “Pedofilia, estupro e adultério são temas para estudante?”. Minha resposta é sim, é claro que são. É óbvio que cada livro deve ser adequado a idade do aluno, ninguém pensaria em sugerir a leitura de Sade ou Pierre Louys a crianças, mas afirmo que os livros de Will Eisner são totalmente adequados a adolescentes. Mais que adequados, necessários. A ideia de que um assunto deva ser sonegado aos estudantes contraria qualquer noção pedagógica, além do bom senso. “Saber sempre é bom”. Familiarizados com temas como a pedofilia, o estupro ou o incesto, jovens brasileiros talvez possam se sentir mais aptos a evitá-los ou mais encorajados a denunciá-los. É para isso, para aprender sobre nós mesmos, que existe a literatura e a arte, divulgá-las é função da escola.
A polêmica do livros “pornográficos” anda rebaixada, como quase todo o debate público, pelo astigmatismo ideológico que “politiza”, na pior acepção da palavra, qualquer conversa. Em São Paulo foram os petistas que caíram de pau no governo Serra por distribuir livros “pornográficos”. Will Eisner, Manoel de Barros e outros depravados foram citados por gente furiosa, que pedia que o governo estadual paulista gastasse dinheiro com “literatura de verdade”. Aqui a crítica parece que mira o governo federal e o MEC, que comprou os livros. Quase todos os críticos falam das obras “em tese”, informam “não ter lido” mas… José Serra, sem ler, afirmou que as obras eram “de baixa qualidade”, e o governo gaúcho “não descarta recorrer a uma medida judicial para impedir a distribuição” dos livros.
Sugiro aos interessados que, para começar, leiam os livros. Garanto que são de altíssima qualidade e, ao contrário do que afirma a secretária Mariza Abreu, a obra de Will Eisner não “estimula a erotização, o comportamento agressivo” e muito menos “uma percepção inadequada das relações afetivo-sexuais”, ao contrário. A obra de Eisner, assim como a Bíblia, Shakespeare, Machado de Assis, Cervantes, ou a obra de qualquer grande autor, utiliza os temas fundamentais que animam o espírito humano, incluindo aí crimes e pecados. Tratar temas como agressão, adultério ou pedofilia não significa “incentivar” a agressão, o adultério, ou a pedofilia. Significa conhecê-los. Não é esta a função da escola?
* Cineasta, dirigiu, entre outros, “O Homem que Copiava” e “Saneamento Básico, o Filme”