por Giba Assis Brasil
em 08 de setembro de 2009
“Londonderry Air” ainda não pode ser o hino nacional da Irlanda do Norte, mas já é aceito como substituto local ao “God Save the Queen” em algumas circunstâncias, como os “Commonwealth Games”, disputados a cada quatro anos em um dos cantos daquele que um dia foi “o império em que o sol nunca se põe”. Em 2010, por exemplo, os Jogos serão em Delhi, e a Rainha não vai ficar braba se os atletas irlandeses forem anunciados pelos acordes de seu hino não oficial.
A melodia
A melodia foi coletada no século XIX pelo músico, pintor e arqueólogo irlandês George Petrie (1790-1866), que a incluiu em sua coleção “Ancient Music of Ireland”, publicada em Dublin, 1855. No texto de apresentação daquela canção em particular, Petrie agradece a colaboração da folclorista amadora Jane Ross (1810-1879), que a teria ouvido tocada por um violinista nas ruas de Limavady, pequena cidade a 27 km de Derry. Sem informações sobre a autoria ou o título, Petrie catalogou-a entre as “canções do povo” e batizou-a como “Londonderry Air”. Londonderry é o nome unionista da capital irlandesa, até hoje contestado pelos nacionalistas e pelos católicos, que preferem Derry City ou simplesmente Derry, do irlandês Doire, bosque de carvalhos. Air é a palavra francesa para o italiano “aria”, canção ou trecho de música para uma única voz, incorporada à língua inglesa e usada geralmente como sinônimo de canção.
Descendentes do violinista cego Jimmy McCurry (1830-1910) sustentam que Jane Ross teria ouvido dele a melodia, e que portanto ele seria o verdadeiro autor do hino irlandês. O pesquisador Jim Hunter, em “The Blind Fiddler from Myroe” (1997), admite que McCurry, à época músico itinerante no vale do rio Roe, pode ter sido a fonte para as anotações da senhora Ross, mas lembra que ela descreveu a canção como “muito antiga”, portanto anterior a McCurry.
Parênteses: o tempero
Curiosamente, o mesmo nome Jimmy McCurry é apresentado por várias fontes como o responsável pela introdução na América de um tempero para churrasco à base de salsinha, alho, vinagre e azeite de oliva, derivado do molho inglês (Worcestershire sauce), e cuja denominação se deveria à dificuldade de os argentinos pronunciarem corretamente o nome de seu criador: daí, “Chimichurry”. É pouco provável que a história seja verdadeira. Mas, se o fosse, certamente o Jimmy McCurry do molho (para alguns um comerciante irlandês, para outros um soldado lutando na Independência Argentina no início do século XIX) seria um homônimo do violinista cego de Myroe, e não o próprio.
História antiga
Segundo Jim Hunter conseguiu apurar recentemente, a história da melodia é ainda mais antiga, e envolve (acredite se quiser) um outro músico cego, o harpista Rory Dall O’Cahan, que nasceu na Irlanda na segunda metade do século XVI. Em 1609, no episódio que ficou conhecido como “the Plantation of Ulster”, as terras ao longo do rio Roe, em que o clã dos O’Cahan tinha vivido por várias gerações, foram confiscadas pela coroa inglesa. Tamanha injustiça teria inspirado o Cego Rory a “compor uma melodia de tanta dor e paixão que acabaria por tocar os corações das pessoas no mundo inteiro”. Uma das versões dessa história, não muito abonadora para o compositor, conta que ele teria sido encontrado bêbado nas margens do Roe, com a harpa tocando sozinha a tal canção, inspirada pelas fadas.
A melodia ficou conhecida como “O’Cahan’s Lament”, e seria a mesma, com uma pequena variação de compasso, anotada por Jane Ross para George Petrie em 1855. Hunter narra inclusive como a ária teria sobrevivido a estes dois séculos e meio sem uma partitura, mas eu confesso que parei de prestar atenção no texto quando apareceu o terceiro músico cego.
A letra
Seja como for, em 1910 o compositor inglês Frederick Weatherly (1848-1929) escreveu uma letra de música que ele chamou de “Danny Boy”. Três anos depois, por sugestão de uma cunhada norte-americana, adaptou-a para encaixar-se na melodia de “Londonderry Air”, que ele desconhecia. Desde então, várias outras letras foram escritas para a mesma canção, mas nenhuma se aproximou do sucesso de “Danny Boy”, que já teve mais de uma centena de gravações, por vozes tão diversas como as de Elvis Presley, Bing Crosby, Carly Simon, Sara Vaughan, Joan Baez e Kiri Te Kanawa. E os versos “Oh, Danny Boy, the pipes, the pipes are calling…”, que para Weatherly eram de uma mulher se despedindo de seu amado, passaram a ser vistos como de um pai vendo o filho partir para a guerra, ou para a diáspora irlandesa.
O filme
Em 1990, Joel e Ethan Coen realizaram o excelente filme “Miller’s Crossing” (no Brasil, “Ajuste Final”), um noir ético (se é que isso faz algum sentido) sobre uma guerra entre gângsters irlandeses e italianos durante a Lei Seca. A trilha sonora, de Carter Burwell, foi quase toda composta de variações a partir da melodia de “Londonderry Air”, incluindo uma versão com a letra “Danny Boy”, cantada por Frank Patterson.
E agora a parte pessoal
Alguns anos depois, quando nós da Casa de Cinema estávamos fazendo programas de campanha política para o PT, o Jorge Furtado percebeu que a melodia tinha um potencial emotivo bastante adequado. Encomendamos ao compositor Dado Jaeger uma nova versão da música, com um arranjo semelhante ao do Burwell, mas que levasse um pouco mais de tempo para chegar ao clímax. E o Dado fez um belo trabalho. Fizemos vários programas com aquela música como fundo, com textos e imagens misturando política e emoção. Funcionou. Imagino que, para muita gente aqui no Rio Grande do Sul (ou pelo menos para quem costuma assistir programas eleitorais), a música tenha ficado associada ao PT.
Poucos meses atrás, eu estava montando o “Nada vai nos separar”, o documentário sobre o centenário do Inter, e tive que apelar para um expediente bastante comum em montagem, que a gente chama de “música de referência”: como o produtor ainda não tinha definido quem comporia a música do filme, e como eu precisava adiantar o tom e o ritmo da montagem, fui encaixando algumas músicas não necessariamente coloradas em sequências que contavam as partes mais emocionantes do centenário. E, depois de várias tentativas, acabei montando a comemoração do título da Libertadores de 2006 com a versão de Dado Jaeger para o “Londonderry Air”.
Ficou bonito. O roteirista Luis Augusto Fischer se emocionou. O diretor Saturnino Rocha lembrou do clima épico de “Coração Valente”, que afinal se passa na Escócia, não muito longe de onde Jane Ross coletou a melodia, 150 anos atrás. Mesmo depois que o Marcelo Fornazier (Fornazzo) compôs mais de vinte temas para o filme, todos colorados e de excelente qualidade, aquele momento em particular ainda parecia funcionar melhor com os ecos do vale do Roe. O produtor Gustavo Ioschpe falou com o Dado Jaeger e até mesmo com o Olívio Dutra para liberar o uso da música. Como a melodia é de domínio público, os herdeiros de Rory Dall O’Cahan e Jimmy McCurry não precisaram ser contatados, mas também merecem nossos agradecimentos, tanto quanto as fadas irlandesas.
Portanto, quem for assistir o “Nada vai nos separar”, no cinema ou em DVD, já sabe qual é a conexão que existe entre os 5 séculos de história da comovente melodia de Derry e os gols do Fernandão e do Tinga, o Sobis correndo pela pista atlética com a bandeira vermelha e branca, o Camilo Manzoni lembrando do avô que morreu antes de ser campeão da América, o Romeu Rodrigues Neto e seu encontro emocionado com o Escurinho na arquibancada, o Rodrigo Bassani vindo de Nova Prata pra levar pra casa seu pedacinho de grama do Beira-Rio.
Comprovado: o mítico harpista irlandês Rory Dall O’Cahan, provável autor de “Londonderry Air”, era colorado.
TEM MAIS:
Texto de Jim Hunter (em inglês) com detalhes sobre a origem de “Londonderry Air”.
Artigo na Wikipédia anglófona sobre o molho Chimichurri.
“Nada vai nos separar” (os cem anos do Sport Club Internacional) - já à venda em DVD.
COMENTÁRIOS
Enviado por nino em 10 de setembro de 2009.
TRI GIBA! TRES CEGOS, UM BÊBADO E FADAS QUE TOCAM HARPA, É UMA LENDA E TANTO. DIGNA DE PERTENCER AO IMAGINÁRIO PRESUMÍVEL DO NOSSO LENDÁRIO FILME. TE METE! QUANTO AO COLORADISMO DO MÍTICO HARPISTA IRLANDÊS. SE TU AFIRMA QUE TÁ COMPROVADO, QUEM SOU EU PRÁ DUVIDAR…
Enviado por Jorge em 10 de setembro de 2009.
Muito bom. Danny Boy, com The Larks.