por Giba Assis Brasil
em 23 de setembro de 2009
Em inglês tem palavra pra tudo. Mondegreen, por exemplo, é um erro de interpretação de uma frase, normalmente uma música ou um poema, provocado por uma justaposição de sons que são percebidos com um significado diferente do original. Como ouvir “tocando B.B.King sem parar” (1) e entender “trocando de biquíni sem parar”.
Ouvir errado deve ser tão antigo quanto a fala humana, mas a palavra pra isso tem pouco mais de 50 anos. Só que a história da palavra começa no final do século XVI, na Escócia, com uma disputa política, religiosa (e talvez mais alguma coisa) entre os condes de Huntley e Murray (ou Moray). Era a época do rei James VI, da Escócia. Estou me repetindo? Mas é preciso, porque alguns anos mais tarde este mesmo James seria rei também da Inglaterra e da Irlanda, agora como James I. Tudo porque a rainha Elizabeth, aquela que reinou por 45 anos e comparecia às estreias de Shakespeare, morreu sem deixar descendentes (e alguns dizem que virgem). Mas isso foi em 1603.
Estamos ainda em 1592, o James que será primeiro ainda é sexto, tem 26 anos e sua rainha, Ana da Dinamarca, apenas 18. Suspeita-se que o Conde de Murray, que era conhecido por sua beleza e tinha até nome de galã (James Stewart), tenha seduzido a Rainha, mesmo porque o rei estava mais interessado numa tal Anne Murray, numa espécie de troca-troca familiar na corte. Seja como for, Huntley conseguiu permissão do rei para julgar Murray por traição. Na sequência, o castelo de Murray foi incendiado, ele conseguiu fugir, mas foi perseguido e morto em campo aberto pelo próprio Huntley, com dois golpes de espada no rosto. A morte de Murray provocou comoção entre seus seguidores, mas o Rei James não puniu Huntley, que se tornou marquês e mais tarde, inclusive, tentou destroná-lo. Mas isso é outra história.
Do episódio do assassinato surgiu a balada popular “The Bonny Earl of Murray” (“O Belo Conde de Murray”), que o folclorista norte-americano Frances James Child catalogou no final do século XIX como “Child Ballad nº 181”. Child aqui era o nome dele: já que não se sabe o autor, quem nomeia é quem encontrou, princípio também conhecido como “achado não é roubado, quem perdeu é relaxado”. Mas é possível que muitas mães americanas da primeira metade do século XX tenham ficado encantadas com o título “Child Ballads” e tenham adquirido o livro para ler à noite para seus filhos pequenos.
Não que a balada 181 de Child possa ser considerada prejudicial à formação das crianças. Mas, tomando por sua estrofe mais conhecida, também não se parece muito com o conceito de literatura infantil da época:
Ye Highlands, and ye Lawlands
Oh where have you been?
They have slain the Earl of Murray,
And layd him on the green.
(“Ó Norte, Ó Sul da Escócia / Por onde vocês andaram? / Eles mataram o Conde de Murray / E o jogaram na relva.”)
Sylvia Wright, jornalista e escritora norte-americana (1917-1981), foi uma que passou a infância ouvindo de sua mãe esse trecho em particular. Mas sempre entendeu errado o último verso: em vez de “and layd him on the green” ela ouvia “and Lady Mondegreen”. É claro, não fazia sentido que o belo conde tivesse morrido sozinho: para a menina Sylvia, os capangas de Huntley tinham matado Murray e sua Lady, e as terras altas e baixas da Escócia só se deram conta do duplo crime quando já era tarde demais.
Na edição de novembro de 1954 da “Harper’s Magazine”, Sylvia Wright escreveu o ensaio “The Death of Lady Mondegreen”, contando da sua desilusão quando, já adulta, percebeu que a tal Lady não existia, ou pelo menos não fazia parte daquela história. Segundo Sylvia, a sua versão pessoal infantil da balada de Murray não podia ser tratada como um simples erro de interpretação (“misinterpretation”), porque “era melhor que o orginal”. Merecia uma palavra nova: mondegreen.
E pegou. Como a coisa existia e era facilmente identificável, e como o nome era sonoro e tinha uma história curiosa por trás, nome e coisa foram aos poucos se juntando e o termo se incorporou à língua inglesa. Mondegreen foi incluída no dicionário da Random House em 2000, e chegou ao Merriam-Webster em 2008. Hoje tem mais de 200 mil referências no Google. Blogueiros pelo mundo afora fazem listas dos “meus mondegreens favoritos”. E até um cantor norueguês chamado (?) Dylan Mondegreen lançou seu primeiro CD em 2007.
E o Virundum? Esse fica pra outro dia.
(1) “Noite do prazer”, música de Paulo Zdanowski, Cláudio Zoli e Arnaldo Brandão
Capa do livro “The Bonny Earl of Murray”, de Edward Ives: o corte no rosto que gerou o Mondegreen, 360 anos depois.
TEM MAIS
Artigo sobre o Conde de Murray na Wikipédia (em inglês).
Ensaio “The Death of Lady Mondegreen”, de Sylvia Wright, no Harper’s Magazine de novembro de 1954. Dá pra ver as páginas; a leitura do texto só é liberada para assinantes.
Biografia de Sylvia Wright (depois de casada, Sylvia Mitarachi) no sítio da Sociedade Histórica de Cambridge
COMENTÁRIOS
Enviado por Julia Anjos Furtado em 27 de setembro de 2009.
Ei, Giba! Mto bom o texto! O pai me comentou e eu vim aqui ler! Mas fiquei pensando… será que o erro clássico “trocando de biquíni sem parar” não é um Soramimi (a Japanese term meaning misunderstanding song lyrics in one language for different words in another language) ao invés de um Mondegreen? beijo, Julia
Enviado por Giba Assis Brasil em 27 de setembro de 2009.
Ih, Júlia, adiantou… Eu ia continuar falando sobre virundum e soramimi, mas o texto ficou grande demais e eu deixei pra depois. Valeu.