por Jorge Furtado
em 04 de dezembro de 2009
Têm sido frequentes as manifestações públicas de repúdio a experiências artísticas, instalações, performances, novos materiais e novos conceitos, coisa que a conversa comum embrulha no pacote “arte moderna” e o mais exaltados definem como “maluquices”. É com alegria e sempre renovada surpresa que percebo a força que a arte tem de provocar paixões e, assim, mover o mundo.
É bom deixar claro, no ambiente envenenado por grosserias do debate público brasileiro, que algumas das pessoas que escrevem contra a “feiúra” da “arte moderna” ou que simplesmente negam-lhe qualquer valor, são intelectuais dos mais respeitáveis, alguns deles meus amigos.
Citação:
“O fato evidente é que não existem conseqüências morais óbvias do modo como as pessoas se entretêm em seus horários de lazer. A convicção de que artistas e connaisseurs são moralmente evoluídos é uma ilusão cognitiva, e tem origem no fato de que nossos circuitos para a moralidade entrecruzam-se com nosso circuitos para o status. Como salientou o crítico George Steiner: “Sabemos que um homem pode ler Goethe ou Rilke à noite, tocar Bach e Schubert, e sair de manhã para um dia de trabalho em Auschwitz”. Inversamente, deve haver inúmeras pessoas analfabetas que doam sangue, arriscam a vida como bombeiros voluntários ou adotam crianças deficientes, mas cuja opinião sobre arte moderna é: “Minha filha de quatro anos poderia ter feito isso.”
“O histórico moral e político dos artistas modernistas não é de se orgulhar. Alguns tiveram conduta deplorável na vida pessoal, e muitos aderiram ao fascismo ou ao stalinismo. O compositor modernista Karlheinz Stockhausen qualificou os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 como “a maior obra de arte imaginável em todo o cosmo” e acrescentou, com inveja, que “também os artistas às vezes ultrapassam os limites do que é viável e concebível, para nos despertar, para nos abrir para outro mundo”. Steven Pinker, em Tábula Rasa. (1)
Não há portanto, qualquer relação entre gosto artístico e condutas morais. Este é um debate estético, não ético.
Não são comuns as queixas contra esculturas de bronze que representam generais armados, gente que comandou batalhas que produziram milhões de órfãos, e que hoje enfeitam as praças onde crianças brincam, desde que a tal “estátua” tenha sido concebida dentro dos padrões clássicos do realismo. Também não vejo motivos para protestos, as crianças e os pombos não sabem quem é aquele homem com a espada, sobre um cavalo. E mais: a arte não é substitutiva. O David de Michelângelo e qualquer figura do Henry Moore ficariam muito bem na mesma praça.
Mais estranho é que não haja protestos veementes contra as toneladas de publicidade, cartazes, placas, outdoors, que empestam as cidades, as estradas e até mesmo os morros, numa privatização indecente - e lucrativa - do espaço visual, que é público. Os que desdenham ou se irritam com os anúncios de sopa de Andy Warhol parecem não se incomodar com os gigantescos anúncios de sopa nas paredes dos prédios em frente as suas janelas.
Na última Bienal do Mercosul, recém terminada, o trabalho do artista paulista Henrique Oliveira chamado “Casa Monstro” provocou reações fortes na cidade.
O historiador Voltaire Schilling a classificou como “a gota d’água derradeira destas perversidades que acometem contra nós, pobres porto-alegrenses”. (…) “Trata-se da reprodução de um tumor que, inchado, é expelido pelas aberturas da construção e vem se mostrar aos olhos dos passantes, tal como se fora um abdômen de um canceroso recém aberto pelo bisturi de um cirurgião. Como se vê, uma maravilha!”
Reação semelhante teve o blogueiro Zealfredo:
“A Casa Monstro não é uma questão apenas de feiúra, fealdade. Vai um pouco além. A minha racionalização é que o que me causou asco a tal edificação está relacionado à boa caracterização de coisas semelhantes a tumores se expandindo pelas aberturas da casa. A casa nos remete à doença, e isso nos deixa doentes. No meu caso, algo enojado. Na questão humana, a casa nos lembra da nossa fragilidade.”
Nem parece necessário ressaltar que o simples fato de uma obra de arte ter provocado tais reações já a justifica amplamente. A casa abandonada pelo poder público, um belo exemplar da arquitetura porto-alegrense do início do século passado, que resistia invisível entre dois grandes prédios e rumava célere para o seu destino de ruína, graças a Bienal e ao trabalho de Henrique Oliveira, finalmente chamou nossa atenção. Espero que seja restaurada, em breve.
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“A ofensa sempre vence”, declarou Gore Vidal, sobre os debates na mídia. Quem fala mal de alguma coisa, chama atenção. Ponderações sérias e altamente defensáveis como as de Voltaire Schilling e Flavio Tavares, acabam se confundindo com rematadas tolices como as de Tom Wolfe, que recebeu uma boa grana para vir aqui dizer, aos que pagaram pra lhe ouvir, que Picasso não sabia desenhar, “abandonou a escola de artes antes de aprender anatomia e perspectiva”.
Picasso foi - não há, entre os que têm um mínimo conhecimento sobre arte, dúvida possível sobre isso - um dos maiores artistas da história. Supor que pintava como pintava por não saber desenhar está além da bobagem, adentra com estandartes e fanfarras no território da ignorância pura e simples. É no mínimo irritante, às vezes ofensivo, quando alguém demonstra ter orgulho de sua ignorância. Aos que assistiram (eu não), Tom Wolfe não parecia estar brincando.
Aqui, “Primeira Comunhão”, pintado em 1895, quando Picasso tinha 14 anos.
Para quem imagina que a arte terminou no século 19, que arte é aquilo que podemos pendurar num prego na parede da sala, sugiro conhecer o trabalho de dois extraordinários artistas: Julius Popp e Janet Echelman.
Julius Popp é alemão, nascido em 1973. Mistura engenharia com escultura, máquinas com arte. Seu trabalho Bit.Fall, uma máquina que chove palavras, é uma obra-prima.
Janet Echelman é uma jovem escultora norte-americana, trabalha com enormes redes, monumentos públicos que mudam conforme a luz e o vento. Assista a este vídeo sobre “A Anêmona”, seu trabalho na Praça da Cidade de Salvador, entre o Porto e Matosinhos, Portugal.
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Arte se discute. Quem não for capaz de perceber o valor do trabalho destes dois artistas deve rever, urgentemente, seus conceitos sobre arte.
Jorge Furtado, 04/12/2009
(1) DAMÁSIO, Antônio. O mistério da consciência. Companhia das Letras, São Paulo, 2000.
Mais sobre Julius Popp:
http://en.wikipedia.org/wiki/Julius_Popp
Site de Janet Echelman:
http://www.echelman.com/
Matéria sobre a “Casa Monstro”, de Eduardo Veras, em Zero Hora:
http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&so…
Texto do historiador Voltaire Schilling, em Zero Hora:
http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&so…
Ótimo site do historiador Voltaire Schilling:
http://educaterra.terra.com.br/voltaire/
Blog Voltasnoporto, texto de Zealfredo:
http://voltasnoporto.blogspot.com/2009/11/casa-monstro-na-bienal-do-merc…
Excelente texto de Claudia Laitano sobre este assunto, em Zero Hora:
http://wp.clicrbs.com.br/agoraeuera/tag/voltaire-schilling/?topo=77,1,1