A Folha Culpada de S. Paulo

por Jorge Furtado
em 09 de março de 2010

Ainda bem que tem gente como o Leandro Fortes prestando atenção, achei que tinha enlouquecido: a Folha de S. Paulo publicou hoje um texto de um sujeito que insinua que os negros, que traficavam escravos na África, e não os brancos, que financiavam os traficantes e compravam (e usavam, e estupravam, e chicoteavam e matavam) seu “produto” no Brasil, são os responsáveis pela escravidão. Até aí, normal, a Folha de S. Paulo tem publicado e-mails anônimos como se fossem documentos e tem aberto espaço para irresponsáveis de todo tipo (vide “estupro do menino do mep”, “ficha da Dilma”, “grampo sem áudio”, “agenda da Lina”, “dossiê do uiscão”, etc.).

A novidade chocante é o jornal abrir espaço para um cara que chama a sua própria linha editorial de “jornalismo delinquente”. O tal sociólogo acusa os repórteres da Folha, na Folha!, de estarem “a serviço de uma doutrina”, de serem “manipuladores”, “militantes fantasiados de repórteres”, de praticarem “um jornalismo que abomina os fatos”. O articulista acusa a Folha, na Folha!, de “falsificação, manipulação e mentira”.

Há uma única e evidente explicação para este flagelo público de seus próprios repórteres, este “suicídio editorial” da Folha: uma mistura de sentimento de culpa e golpe de marketing. Praticando, faz tempo, um jornalismo que abomina, manipula e, às vezes, inventa fatos, sempre a serviço da direita reunida em torno da candidatura de José Serra (PSDB paulista/DEM), expia sua culpa massacrando seus próprios repórteres -quando eles denunciam um grosseira falsidade intelectual da direita hidrófoba - e ainda posa de “neutra”.

Neutralidade significa ter critério editorial e jornalístico e não abrir espaço para idiotas de todas as tendências. Minha total solidariedade aos repórteres Laura Capiglione e Lucas Ferraz, publicamente ofendidos por seus patrões.


O SUICÍDIO EDITORIAL DA FOLHA
Por Leandro Fortes, no Brasília Eu Vi

A direção da Folha de S.Paulo, simplesmente, autorizou a um elemento estranho à redação (mas não aos diretores), o sociólogo Demétrio Magnoli, a chamar de “delinquentes” dois repórteres do jornal, autores de matéria sobre a singular visão do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) da miscigenação racial no Brasil. Vocês, não sei, mas eu nunca vi isso na minha vida, nesses 24 anos de profissão. Nunca. Por tabela, também o colunista Elio Gaspari, que desceu a lenha no malfadado discurso racista de Demóstenes Torres, acabou no balaio da delinquencia jornalística montado por Magnoli.

Das duas uma: ou a Folha dá direito de resposta aos repórteres insultados (Laura Capiglione e Lucas Ferraz), como, imagino, deve prever o seu completíssimo manual de redação, ou encerra as atividades. Isso porque Magnoli, embora frequente os saraus do Instituto Milleniun, não entende absolutamente nada de jornalismo e confundiu reportagem com opinião. A matéria de Laura e Lucas nada tem de ideológica, nem muito menos é resultado de “jornalismo engajado” (contra o DEM, na Folha??). A impressão que se tem é que houve falha nos filtros internos da redação e deixaram passar, por descuido ou negligência, uma matéria cujas conseqüências aí estão: o senador Torres, sujeito oculto da farsa do grampo montada em consórcio entre a Veja e o STF, virou, também, o símbolo de um revisionismo histórico grotesco, no qual se estabelece como consensual o estupro de mulheres negras nas senzalas da Colônia e do Império do Brasil.

A reação interna à repercussão de uma matéria elaborada por dois repórteres da sucursal de Brasília, terceirizada por Demétrio Magnoli, é emblemática (e covarde), mas não diz respeito somente à Folha de S.Paulo. O artigo “Jornalismo delinquente”, publicado na edição de hoje (9 de março de 2010), na página de opinião do jornal, nada tem a ver com políticas de pluralidade de opiniões, mas com intimidação pura e simples voltada para o enquadramento de repórteres e editores, e não só da Folha, para os tempos de guerra que se aproximam. A recusa de Aécio Neves em ser vice de José Serra deverá jogar o DEM, outra vez, no vácuo dos tucanos, a reviver a dobradinha iniciada entre Fernando Henrique Cardoso e o PFL, de triste lembrança. O imenso mal estar causado pela fala de Demóstenes Torres na tribuna d o Senado Federal, resultado do trabalho rotineiro de dois repórteres, acabou interpretado como inaceitável fogo amigo. Capaz, inclusive, agora, de a dupla de jornalistas correr perigo de empregabilidade, para usar um termo caro à equipe econômica tucana dos tempos de FHC.

Demétrio Magnoli, impunemente, chama a reportagem da Folha de S.Paulo de “panfleto disfarçado de reportagem”, afirmação que jamais faria, e muito menos a publicaria, sem autorização da direção do jornal, precedida de uma avaliação editorial e política bastante criteriosa. O fato de se ter permitido a Magnoli, um dos arautos da tese conceitualmente criminosa de que não há racismo no Brasil, insultar dois repórteres e o principal colunista da Folha, em espaço próprio dentro de uma edição do jornal, deixa a todos - jornalistas e leitores - perplexos com os rumos finais da velha mídia e de seu inexorável suicídio editorial em nome de uma vingança ideológica, ora baseada em doutrina, ora em puro estado de ódio racial e de classe.


A TEORIA NEGREIRA DO DEM SAIU DO ARMÁRIO
Elio Gaspari, na Folha

O senador Demóstenes Torres (DEM-GO) é uma espécie de líder parlamentar da oposição às cotas para estimular a entrada de negros nas universidades públicas. O principal argumento contra essa iniciativa contesta sua legalidade, e o caso está no Supremo Tribunal Federal, onde realizaram-se audiências públicas destinadas a enriquecer o debate.

Na quarta-feira o senador Demóstenes foi ao STF, argumentou contra as cotas e disse o seguinte:

”[Fala-se que] as negras foram estupradas no Brasil. [Fala-se que] a miscigenação deu-se no Brasil pelo estupro. Gilberto Freyre, que hoje é renegado, mostra que isso se deu de forma muito mais consensual”.

O senador precisa definir o que vem a ser “forma muito mais consensual” numa relação sexual entre um homem e uma mulher que, pela lei, podia ser açoitada, vendida e até mesmo separada dos filhos.

Gilberto Freyre escreveu o seguinte:

“Não há escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime”.

“O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com a sua docilidade de escrava: abrindo as pernas ao primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo, não: ordem.”

“Não eram as negras que iam esfregar-se pelas pernas dos adolescentes louros: estes é que no sul dos Estados Unidos, como nos engenhos de cana do Brasil, os filhos dos senhores, criavam-se desde pequenos para garanhões. (…) Imagine-se um país com os meninos armados de faca de ponta! Pois foi assim o Brasil do tempo da escravidão.” Demóstenes Torres disse mais:

“Todos nós sabemos que a África subsaariana forneceu escravos para o mundo antigo, para o mundo islâmico, para a Europa e para a América. Lamentavelmente. Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos. Mas chegaram. (…) Até o princípio do século 20, o escravo era o principal item de exportação da economia africana”.

Nós, quem, cara-pálida? Ao longo de três séculos, algo entre 9 milhões e 12 milhões de africanos foram tirados de suas terras e trazidos para a América. O tráfico negreiro foi um empreendimento das metrópoles europeias e de suas colônias americanas. Se a instituição fosse africana, os filhos brasileiros dos escravos seriam trabalhadores livres.

No início do século 20 os escravos não eram o principal “item de exportação da economia africana”. Àquela altura o tráfico tornara-se economicamente irrelevante. Ademais, não existia “economia africana”, pois o continente fora partilhado pelas potências europeias. Demóstenes Torres estudou história com o professor de contabilidade de seu ex-correligionário José Roberto Arruda.

O senador exibiu um pedaço do nível intelectual mobilizado no combate às cotas.


A COTA DO DEM
Marcos Nobre, na Folha

O SENADOR DEMÓSTENES Torres (DEM-GO) resolveu entrar de sola na disputa sobre políticas de reconhecimento nas universidades públicas. Falando contra as chamadas “cotas”, disse barbaridades várias. Falou, por exemplo, do escravo como “principal item de exportação da economia africana” até o início do século 20. Discorreu sobre uma pretensa “integração da casa-grande com a senzala, ainda que com dominação”, tendo sido a dita “integração”, segundo ele, “muito mais consensual do que gostaria o movimento negro”.

Entre outros, Elio Gaspari e Luiz Felipe Alencastro, na Folha de domingo último, já mostraram a infâmia de tais afirmações. A questão que fica é: por que o senador decidiu colocar o brucutu na praça neste momento? E a pergunta cabe porque, por incrível que pareça, Demóstenes Torres é o mais próximo de um ideólogo de que dispõe o seu partido.

A resposta mais plausível para essa defesa abrupta e ríspida de teses infames é: porque o DEM está encurralado. A prisão de José Roberto Arruda foi o golpe de misericórdia que diminuiu ainda mais o já exíguo espaço da mais autêntica direita brasileira.

Demóstenes Torres foi o primeiro a pedir a cabeça do ex-governador do DF e de seu vice. Percebeu o desastre que significava a demora de medidas como a expulsão sumária do partido dos principais envolvidos no escândalo.

Teve clareza de que ali se esvaia o último recurso de que tinha lançado mão o DEM para tentar se manter como um partido relevante, o discurso da “eficiência com ética”. Algo que fazia o partido recuar às suas origens, ao conservadorismo da velha União Democrática Nacional lá dos anos 1950.

Nem isso mais restou. O ataque de Demóstenes Torres às políticas de reconhecimento é um ato de desespero. É o sintoma mais claro de que o DEM será obrigado a recuar ainda mais. Terá de ir ao mais profundo do conservadorismo social, moralista e nacionalista para tentar manter algo do seu eleitorado.

Terá de tentar a sua sorte nos limites da família, da tradição e da propriedade. No fundo, é a vitória do modelo Kátia Abreu (DEM-TO), senadora que defende de há muito um ruralismo canhestro e reacionário.

Na entrevista a Maria Inês Nassif, do jornal “Valor Econômico”, Demóstenes Torres afirmou ainda: “O problema estrutural do Brasil não é o racismo, mas a pobreza”. É tocante ver os conservadores descobrirem a pobreza estrutural brasileira, mesmo que tardiamente.

Principalmente porque é essa mesma pobreza que, com título de eleitor na mão, vai lhes tirar os mandatos em 3 de outubro.


COMENTÁRIOS

Enviado por Luciano Prado em 09 de março de 2010.

Lost. É nisso que dá arregimentar trombadinhas para fazer o trabalho sujo. O artigo de Magnoli é apenas o início de uma série que se avizinha. O tal fórum Millenium foi o ponto de partida. Barões da mídia velha apresentaram seus pitbulls. Magnoli foi um dos que desfilou seus caninos afiados para deleite de seu dono. Matadores de aluguel da honra alheia são, por princípio, irresponsáveis. Não têm compromisso com a ética e muito menos com a moral. O que os move é a grana. Os mandantes estão, agora, autorizando a matança dos “traidores” em sua própria gang. A ausência de autocrítica tem sido o veneno que vai sepultar a velha mídia. Não existe mais espaço para descer. É o fundo do poço.