por Jorge Furtado
em 17 de março de 2010
O primeiro teatro de Porto Alegre, segundo o historiador Athos Damasceno, foi inaugurado em 1794 e se chamava Casa da Comédia, “um mal ajeitado barracão pobremente feito de madeira”, pintado de amarelo, com 36 camarotes e uma platéia para 300 pessoas. Em 1797 o teatrinho foi arrendado por Pedro Pereira Bragança e passou a se chamar Casa da Ópera, quando contratou uma “cômica representante”, Maria Benedita de Queiros Montenegro. O contrato, o primeiro que se conhece de uma atriz por aqui, foi registrado em cartório e tem detalhes que sugerem que, nestes 213 anos, muita coisa mudou e muitas continuam iguaizinhas.
Pedro Pereira fez constar no contrato que sua atriz era obrigada “a achar-se sempre pronta e a hora que lhe for determinada a todos os ensaios”, “a contentar-se com aquele vestuário tal qual lhe der” o dono do teatro, “a sujeitar-se com tudo a boa ou má direção do ensaiador e vontade do empresário”. Ela teria “a preferência nos papéis de primeira dama, não deixando porém por essa causa de se sujeitar algumas vezes à vontade e disposição do empresário, quando entender por alguma circunstancia dar-lhe outro qualquer papel”. A atriz seria responsabilizada pela atitude dos demais atores, que deviam ter “toda a atenção e respeito a Política, evitando deste modo com moderação e prudência toda a desordem e dissenções que possa haver na corporação”.
Damasceno informa que “os primeiros espetáculos realizados por D. Maria Benedita alcançaram, segundo consta, animadores aplausos e, mais do que isto, freguesia assídua e numerosa. Mas, com o correr dos dias, a frequência começou a diminuir de tal forma que, ao findar-se o prazo de um ano estabelecido pelo contrato, os dois sócios se apartaram, sem olhar para trás. Aí, o teatrinho fechou as portas”.
Atrizes e atores, por aqui e por toda parte, continuam tendo que se sujeitar “a boa ou má direção dos seus ensaiadores” e preferindo sempre os primeiros papéis.
O texto integral do contrato:
“Escritura de obrigação que passa a primeira dama D. Maria Benedita de Queiros Montenegro a Pedro Pereira Bragança como empresário da Casa da Opera desta Vila, como abaixo se declara. Saibam quantos este público instrumento de escritura de obrigação virem, que sendo no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, de 1797 anos, aos 4 dias do mês de agosto nesta Vila de Porto Alegre, continente de S. Pedro, no cartório de mim tabelião adiante nomeado e presentes partes havidas e ajustadas, a saber de uma como empresário Pereira Braganca e da outra D. Maria Benedita de Queiros Montenegro, cômica representante, que reconheço pelos próprios de que dou fé e perante as testemunhas ao adiante nomeadas, pela dita D. Maria, cômica representante, me foi dito que ela havia justo e contratado com o dito empresário para representar no Teatro, por ele arrendado, pelo tempo de um ano, contado da data desta a pagar-lhe por cada uma opera, 3$840 réis (1) e um benefício por todo o mês vindouro de outubro e tudo debaixo das condições seguintes, a saber: que será ela obrigada a dar prontas e sabidas duas óperas novas e dois entremezes (2) em cada um mês e ter pronto para outra o entremez que o empresário quiser repetir; será obrigada a achar-se sempre pronta e a hora que lhe for determinada a todos os ensaios que o empresário quiser fazer e aprender todo o gênero de cantorias que o empresário determinar para ornamento da ópera, sujeitando-se para este fim ao Mestre que pelo dito empresário lhe for dado; será obrigada a contentar-se com aquele vestuário tal qual lhe der o dono da casa; e a sujeitar-se com tudo a boa ou má direção do ensaiador e vontade do empresário; será obrigada a se apresentar pronta de todo o vestuário nas óperas de meio caráter e entremezes; pelo contrário nas óperas heróicas será obrigado o empresário a dar-lhe um vestuário, excetuando tocado, jóias, luvas, leque e ela será obrigada de sua parte a aceitar em todo o tempo qualquer indenização que se ajuntar para qualquer ação teatral toda a ocasião de desordem ou despeito que possa haver entre os demais cômicos, e que possa perturbar a dita ação com prejuízo do dono da casa; será obrigado o dono da casa a dar-lhe um benefício por todo o mês vindouro de outubro deste corrente ano, emprestando-lhe para este fim tudo quanto houver na casa, isto é, cenário, vestuário e mais móveis pertencentes a dita, com a condição para representar no decurso de ano e meio, gratuitamente, uma ópera nova e um entremez a benefício do teatro e a concorrer com o seu indivíduo para tudo o mais que interessar o dito divertimento sendo dirigido para aumento e conservação do mesmo teatro; isto e, das suas alfaias, cenário e mais móveis de que necessita; que terá a preferência nos papéis de primeira dama, não deixando porém por essa causa de se sujeitar algumas vezes à vontade e disposição do empresário, quando entender por alguma circunstancia dar-lhe outro qualquer papel tanto de óperas como de entremez, que ele empresário, veja lhe será mais próprio por algum motivo. E logo pelo empresário Pedro Pereira Bragança me foi dito que era verdade todo o expressado nesta escritura por assim o haver ajustado e pactuado com a dita cômica, que também se obrigava por sua pessoa e bens a contribuir-lhe prontamente com seu respectivo salário de cada uma opera logo que tiver vencido e a ter com toda a atenção e respeito a Política, evitando deste modo com moderação e prudência toda a desordem e dissenções que possa haver na corporação, em qualquer ação teatral e dar-lhe o dito beneficio na forma que ficou dito sem a menor ressonância e a ser pronta na representação dos papéis tanto das operas como dos entremezes, dando tempo proporcionado para poder estudar os ensaios das óperas, ate sua completa execução para realmente ser cuidadosa em administrar em tempo próprio tudo quanto ele empresário vir necessário para se apresentar pronta na cena. Nestes termos havidos e ajustados me pediram a mim tabelião que fizesse este instrumento nessa nota, onde sendo-lhes lido aceitaram e eu tabelião aceito como pessoas públicas estipulante e aceitante (ilegível) direito desta em que assinaram sendo testemunhas presentes Luciano de Sousa Correa e Jose Inácio de Medeiros, conhecidos de mim tabelião Antonio Manoel de Jesus Andrade, que o escrevi (a) Maria Benedita de Queiros Montenegro, Pedro Pereira Bragançaa, Luciano de Sousa Correa, Jose Inácio de Medeiros”.
Do livro “Palco, salão e picadeiro em Porto Alegre no século XIX”, de Athos Damaceno, Editora Globo, 1956.
(1) Considerando que 1 conto de réis (1.000$000) comprava 1 kg de ouro e que hoje a grama de ouro está cotada em R$ 67,00, o pagamento de nossa primeira atriz (3$840) seria hoje de R$ 257,28 por uma apresentação.
(2) Entremez era uma peça curta, de variada tipologia e tom geralmente burlesco, representada no princípio ou entre os atos ou no final de peças teatrais sérias de longa duração
COMENTÁRIOS
Enviado por João Volino Corrêa em 20 de março de 2010.
O historiador Athos Damasceno, tio avô de um grande amigo, Atila, que hoje mora em Goiás, e vem a ser primo de conhecido humorista, tem em sua “homenagem” uma praça em forma de triângulo, que se encontra no início das paralelas da Coronel Bordini e Quintino Bocaiúva, transversal a Cristovão Colombo. Praça completamente abandonada, que deveria ter sido revitalizada pelo consórcio do Conduto Álvaro Chaves Goethe, local usado como dormitório de mendigos à noite ou caigangues que vendem seus artesanatos de dia. Enquanto a comunidade, ao invés de cobrar intervenção da SMAM para devolver o espaço de lazer aos moradores, solicitou que os bancos fossem retirados para impedir que fossem usados como camas… Medida inútil, pois é mais macio dormir na grama. Nosso historiador, infelizmente, amarga triste memória em espaço público, pelo descaso do poder executivo e da comunidade, esperançosa de ver cercada aquela nesga de lembrança rejeitada como espaço de sociabilidade. Há mudanças para pior, além daquelas que nunca mudam para melhor.