por Jorge Furtado
em 29 de março de 2010
Nunca sei o que dizer da morte. “Eu sinto muito, eu gostava muito dele, a gente vai sentir muita falta”, são os indolores clichês em que me refugio nos velórios. Dizer o quê? Não é hora para ser original, a morte não é de brincadeira, não dá bola para boas frases. A dor de quem fica é um susto permanente, transformador.
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“A morte é o fato primeiro e mais antigo, quase me atreveria a dizer, o único fato”, escreveu Elias Canetti. Já vi alguns nascimentos e algumas mortes. Garanto que a vida é um fato, tão grande quanto, e também inevitável. A vida continua.
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Um grande filme sobre a morte é “Guantanamera”, de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío. É uma comédia, mas no meio o filme pára e, sob uma belíssima chuva, conta o mito yorubá da criação da morte, por Olofin, o Deus supremo.
Olofin e a Imortalidade: trecho de Guantanamera, de Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío.
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Outro grande filme sobre a morte é do John Huston, “Os vivos e os mortos” (The Dead), baseado num conto de “Dublinenses”, de James Joyce.
Um dos personagens, Gabriel, discursa aos convidados do jantar:
“Encontros como este sempre nos ocorrem tristes recordações: lembranças do passado, da juventude, de mudanças, de rostos ausentes cuja falta sentimos. Nossa passagem pela vida é marcada por muitas dessas recordações e se tivéssemos de pensar nelas todo o tempo, não nos sobrariam forças para desempenhar nossas tarefas entre os vivos. Todos nós temos deveres e afetos para com os vivos que, com todo direito, reclamam nossa incansável dedicação”.
(trecho de “A Morte”, de James Joyce, tradução de Hamilton Trevisan.)
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Vez em quando surge um grande poeta, uma raridade. Paulo Henriques Britto é um grande poeta, além de excepcional tradutor. Em seu livro “Tarde” há alguns belíssimos poemas que falam da morte. Um deles:
A dor do fim
contamina o momento anterior
e dele passa ao instante antes,
e sendo assim
o que era um só ponto final de dor
vira uma sucessão de instantes
sempre a doer,
a andar pra trás, de dor em dor, chegando
ao início de tudo, enfim,
sem entender
como pode um começo doer tanto
quanto (se não for mais que) um fim
Paulo Henriques Britto, do livro “Tarde”.
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Algumas das melhores reflexões sobre a morte são de Shakespeare, especialmente em Hamlet, mas também em muitas outras peças. Me arrisco aqui numa tradução de trecho da canção fúnebre entoada por Guidério e Arvirago no quarto ato de Cimbeline, Rei da Britânia:
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Foi-se o medo do sol de verão
Da neve ou do rigor do inverno
Terminaste no mundo a tua missão
Foste pago e tens abrigo eterno
Jovens te seguirão, não estarás só
Tudo que está vivo volta ao pó
Foi-se o medo da ira do patrão
Foi-se a dor e a tirania, enfim
Já não precisas de calçado ou pão
E o carvalho vale o mesmo que capim
O magnata, o cientista, o faraó
Todos te seguirão, de volta ao pó
Foi-se o medo do raio em noite escura
Das chuvas, do vento, do granizo
Foi-se o medo da calúnia, da censura
Estás acima dos gemidos e do riso
Nem dos amantes a morte tem dó
Também te seguirão, de volta ao pó
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(Cimbeline, IV, 2)
Fear no more the heat o’ th’ sun
nor the furious winter’s rages.
Thou thy worldly task hast done,
home art gone and ta’en thy wages.
Golden lads and girls all must,
as chimney-sweepers, come to dust.
Fear no more the frown o’ th’ great,
thou art past the tyrant’s stroke.
Care no more to clothe and eat,
to thee the reed is as the oak:
the sceptre, learning, physic, must
all follow this and come to dust.
Fear no more the lightning-flash,
nor th’all-dreaded thunder-stone.
Fear not slander, censure rash.
Thou hast finish’d joy and moan.
All lovers young, all lovers must
consign to thee and come to dust.
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Para comprar o livro “Tarde”, de Paulo Henriques Britto:
“The Dead”, de James Joyce, em inglês:
Trailer do filme:
https://youtu.be/ZT_7rOkvNKU