por Jorge Furtado
em 19 de maio de 2010
O Senador Marconi Perillo, que no momento preside o Senado Federal, declarou que dará urgência à votação do projeto “Ficha Limpa” hoje mesmo: “Será uma grande resposta que o Senado dará ao Brasil”.
Da parte que me toca (o Brasil), informo que não perguntei nada ao Senado. Aliás, já que fui citado (nasci e moro no Brasil), acho que o Senado deveria ser extinto. O Senado nasceu como poder moderador, barreira conservadora construída para evitar os choques diretos do Rei com a Plebe representada na Câmara. Resistiu na República ainda como muralha conservadora, composta pelos representantes das elites estaduais (coronéis, líderes políticos, grande proprietários) com a desculpa de representar os estados na federação. (José Sarney, por exemplo, uma das principais lideranças políticas e econômicas do Maranhão, está no Senado representando o estado do Amapá). Nas votações no Senado, a vontade de um cidadão do Acre vale cem vezes mais que a vontade de um cidadão de São Paulo, cada estado, não importa sua população, tem três senadores. (1)
O sistema bicameral tem algum sentido, por exemplo, nos Estados Unidos, uma federação de fato, onde os estados têm grande autonomia e legislações muito distintas. No Congresso americano, com exceções, alguns projetos de lei vão para a Câmara e outros, diferentes, vão para o Senado. No Brasil, tudo que passa pelo Congresso tem que ser votado na Câmara e no Senado, e às vezes ainda volta para a Câmara, num ping-pong que raramente melhora alguma idéia, piora muitas, inviabiliza outras tantas, e só faz aumentar o poder de barganha de cada voto. Isso para não falar do absurdo dos suplentes - em muitos casos financiadores da campanha dos titulares - que vão, sem escalas, diretamente do anonimato absoluto para um posto de extrema importância na definição dos destinos do país.
É bom que se diga que alguns dos melhores e mais dignos políticos brasileiros são senadores. Seriam excelentes deputados federais.
O maior empecilho à extinção do Senado é, ao meu ver, arquitetônico: o que fazer com aquele prato virado para baixo? Perguntem ao Niemeyer, ele há de ter uma boa idéia.
O fato é que, depois da unanimidade na votação na Câmara, chegou a vez do Senado dar uma resposta ao Brasil e aprovar, por unânime unanimidade 100% absoluta estrelinhas e fanfarras, o projeto da “Ficha Limpa”. (2) O governo já declara que o “Ficha-Limpa” terá prioridade, a votação do Pré-sal pode esperar. Afinal, qual a importância de definir o futuro econômico e a matriz energética do país nos próximos 50 anos perto da urgência de dar “uma resposta ao Brasil” e aprovar um projeto com um nome tão bacana como este, “Ficha Limpa”?
Só para lembrar, o senador Marconi Perillo, hoje tucano (PMDB 1982-1992, PST 1992-1993, PP 1993-1995, PPB 1995, PSDB desde 1995), que assim como todos os deputados, e certamente todos os senadores, quer aprovar o “Ficha Limpa” hoje mesmo, foi denunciado pelo Ministério Público por supostas fraudes em sua campanha, incluindo uso de notas frias, caixa 2, ocultação de provas e uso da máquina pública. A investigação inclui reveladoras escutas telefônicas feitas com autorização da justiça, amplamente divulgadas.
Com a presa que estão e com a comovente unanimidade nacional, talvez o “Ficha Limpa” já esteja aprovado e valendo enquanto termino de escrever este texto. A partir de amanhã, portanto, estarão todos os já eleitos de ficha limpinha, uma beleza! Já aquele sujeito que queria ser vereador para denunciar as falcatruas do Coronel que manda na cidade (e, é claro, tem 12 advogados e a ficha limpa), infelizmente não vai poder concorrer, uma vez que em 1996 ele foi preso (com um baseado na saída de um show, ou não pagou pensão alimentícia para ex-mulher, ou foi fiador de um picareta que comprou um carro, ou deu um soco no segurança de uma boate que mexeu com a namorada dele) e o Juiz da tal cidade, que é casado com a irmã do Coronel que manda na tal cidade, decretou: ficha suja.
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(1) Para ser mais exato, 114 vezes. Cada senador de São paulo representa 10.014.713 eleitores paulistas, cada senador do Acre representa 87.248 eleitores acrianos.
(2) Conforme o previsto no texto que publiquei esta manhã:
Senado aprova por unanimidade Ficha Limpa, que segue para sanção de Lula
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Entrevista do advogado Alberto Rollo, presidente do Instituto de Direito Político Eleitoral e Administrativo (IDIPEA), no Terra:
“Essa lei (Ficha Limpa), como foi lançada na Câmara, tem incrível semelhança com a LC5/70. Mil novecentos e setenta. Brasil campeão mundial e a Ditadura flanando com (o então presidente da República, Emílio Garrastazu) Médici. Eu vivi isso e tive problemas nessa época também, defendendo clientes, jornais etc. Bom, de repente, nós vamos voltar a essa época. Uma denúncia oferecida pelo Ministério Público já é suficiente para inviabilizar o candidato. O povo é que tem que resolver. Ah, mas se deixar assim, “o povo não sabe votar”. Aí, pegaram o projeto de lei, altamente vinculado à ideia do Regime Militar. Era tudo censura. Se um membro do Ministério Público, mediante denúncia, consegue tirar você do direito de votar e ser votada, torna você inelegível, isso é arbítrio. Isso é regime militar. Quem tem que decidir quem vai receber voto e quem não vai é o povo.”
ATUALIZAÇÃO
Hoje, 3 de agosto de 2010, encontro esta bela entrevista do ministro Eros Grau. Concordo com tudo, menos com a última frase, onde ele generaliza a crítica à Brasília, uma cidade com mais vida do que parece quando é vista só pelas janelas. No mais, assino e dou fé.
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“Lei da Ficha Limpa põe em risco o estado de direito’Eros Roberto Grau. Ex-ministro do Supremo Tribunal Federal
Fausto Macedo, Felipe Recondo - O Estado de S.Paulo
Eros Roberto Grau deixou ontem a cadeira de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) convencido de que a Lei da Ficha Limpa põe “em risco” o Estado de Direito. Ele acusa o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de ignorar o princípio da irretroatividade das leis. “Há muitas moralidades. Se cada um pretender afirmar a sua, é bom sairmos por aí, cada qual com seu porrete. Estou convencido de que a Lei Complementar 135 é francamente, deslavadamente inconstitucional.”
O ministro sai do Supremo, após quase seis anos na mais alta instância da Justiça, onde chegou por indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em junho de 2004. Em entrevista ao Estado, Eros Grau critica também as transmissões dos julgamentos. “Isso só vai acabar no dia em que um maluco que se sentir prejudicado agredir ou der um tiro num ministro”, afirmou.
O senhor deu várias demonstrações de cansaço no STF. O que o desanimou?
O fato de as sessões serem transmitidas atrapalha muito, porque algumas vezes o membro do tribunal se sente, por alguma razão, compelido a reafirmar pontos de vista. Existem processos que poderiam ser julgados com maior rapidez. Muitas vezes a coisa fica repetitiva e poderia ser mais objetiva.
O senhor é contra as transmissões?
Essa prática de televisionar as sessões é injustificável. O magistrado não deve se deixar tocar por qualquer tipo de apelo, seja do governo, seja da mídia, seja da opinião pública. Tem que se dar publicidade à decisão, não ao debate que pode ser envenenado de quando em quando. Acaba se transformando numa sessão de exibicionismo.
Existe a possibilidade de o tribunal deixar de exibir as sessões ao vivo?
Isso só vai acabar no dia em que um maluco que se sentir prejudicado agredir ou der um tiro num ministro. Isso pode acontecer em algum momento. Até que isso aconteça, haverá transmissão. Depois não haverá mais.
Em algum momento o senhor foi abordado na rua dessa forma?
Eu estava no aeroporto de Brasília com a minha mulher, depois do julgamento da lei de anistia, e veio uma maluca gritando, dizendo: “aí, está protegendo torturador”. Foi a única vez que me senti acossado.
Para Eros Grau, o que é ficha limpa?
“Ficha limpa” é qualquer cidadão que não tenha sido condenado por sentença judicial transitada em julgado. A Constituição do Brasil diz isso, com todas as letras.
Políticos corruptos não são uma ameaça aos cofres públicos e ao estado de direito?
Sim, sem nenhuma dúvida. Políticos corruptos pervertem, são terrivelmente nocivos. Mas só podemos afirmar que este ou aquele político é corrupto após o trânsito em julgado, em relação a ele, de sentença penal condenatória. Sujeitá-los a qualquer pena antes disso, como está na Lei Complementar 135 (Ficha Limpa), é colocar em risco o estado de direito. É isto que me põe medo.
O que está em jogo não é a moralidade pública?
Sim, é a moralidade pública. Mas a moralidade pública é moralidade segundo os padrões e limites do estado de direito. Essa é uma conquista da humanidade. Julgar à margem da Constituição e da legalidade é inadmissível. Qual moralidade? A sua ou a minha? Há muitas moralidades. Se cada um pretender afirmar a sua, é bom sairmos por aí, cada qual com seu porrete. Vamos nos linchar uns aos outros. Para impedir isso existe o direito. Sem a segurança instalada pelo direito, será a desordem. A moralidade tem como um de seus pressupostos, no estado de direito, a presunção de não culpabilidade.
A profusão de liminares concedidas a candidatos, inclusive pelo Supremo, não confunde o eleitor?
Creio que não. Juízes independentes não temem tomar decisões impopulares. Não importa que a opinião publicada pela imprensa não as aprove, desde que elas sejam adequadas à Constituição. O juiz que decide segundo o gosto da mídia não honra seu ofício. De mais a mais, eleitor não é imbecil. Não se pode negar a ele o direito de escolher o candidato que deseja eleger.
Muitos partidos registraram centenas de candidaturas mesmo sabendo que elas poderiam ser enquadradas na Lei 135/2010, que barra políticos condenados por improbidade ou crime. Não lhe parece que os partidos estão claramente atropelando a Lei da Ficha Limpa, esperando as bênçãos do Judiciário?
Não, certamente. O Judiciário não existe para abençoar, mas para aplicar o direito e a Constituição. Muito pior do que corrupto seria um juiz, medroso, que abençoasse. Estou convencido de que a Lei Complementar 135 é francamente, deslavadamente inconstitucional.
Como aguardar pelo trânsito em julgado se na esmagadora maioria das ações ele é inatingível?
O trânsito em julgado não é inatingível. Pode ser demorado, mas as garantias e as liberdades públicas exigem que os ritos processuais sejam rigorosamente observados.
A Lei da Ficha Limpa é resultado de grande apelo popular ao qual o Congresso se curvou. O interesse público não é o mais importante?
Grandes apelos populares são impiedosos, podem conduzir a chacinas irreversíveis, linchamentos. O Poder Judiciário existe, nas democracias, para impedir esses excessos, especialmente se o Congresso os subscrever.
Não teme que a Justiça decepcione o País?
Não temo. Decepcionaria se negasse a Constituição. Temo, sim, estarmos na véspera de uma escalada contra a democracia. Hoje, o sacrifício do direito de ser eleito. Amanhã, o sacrifício do habeas corpus. A suposição de que o habeas corpus só existe para soltar culpados levará fatalmente, se o Judiciário nos faltar, ao estado de sítio.
O senhor teme realmente uma escalada contra a democracia?
Temo, seriamente, de verdade. O perecimento das democracias começa assim. Estamos correndo sérios riscos. A escalada contra ela castra primeiro os direitos políticos, em seguida as garantias de liberdade. Pode estar começando, entre nós, com essa lei. A seguir, por conta dessa ou daquela moralidade, virá a censura das canções, do teatro. Depois de amanhã, se o Judiciário não der um basta a essa insensatez, os livros estarão sendo queimados, pode crer.
Por que o Supremo Tribunal Federal nunca, ou raramente, condena gestores públicos acusados por improbidade ou peculato?
Porque entendeu, inúmeras vezes, que não havia fundamentos ou provas para condenar.
Que críticas o senhor faz à forma do Judiciário decidir?
As circunstâncias históricas ensejaram que o Judiciário assumisse uma importância cada vez maior. Isso pode conduzir a excessos. O juiz dizer que uma lei não é razoável! Ele só pode dizer isso se ele for deputado ou senador. Os ministros não podem atravessar a praça (dos Três Poderes, que separa o Supremo do Congresso). Eu disse muitas vezes isso lá: isso é subjetivismo. O direito moderno é a substituição da vontade do rei pela vontade da lei. Agora, o que se pretende é que o juiz do Supremo seja o rei. É voltar ao século 16, jogar fora as conquistas da democracia. Isso é um grande perigo.
Isso tem acontecido?
Lógico. Inúmeras vezes o tribunal decidiu, dizendo que a lei não é razoável. Isso me causa um frio na espinha. O Judiciário tem que fazer o que sempre fez: analisar a constitucionalidade das leis. E não se substituir ao legislador. Não fomos eleitos.
O senhor tem coragem de votar em um político com ficha suja?
Entendido que “ficha-suja” é unicamente quem tenha sido condenado por sentença judicial transitada em julgado, certamente não votarei em um deles. Importante, no entanto, é que eu possa exercer o direito de votar com absoluta liberdade, inclusive para votar em quem não deva.
O senhor está deixando o STF. Retoma a advocacia? Aceitará como cliente de sua banca um folha corrida?
Terei mais tempo para ler e estudar. Escrever também, fazer literatura. E trabalhar com o direito. Para defender quem tenha algum direito a reclamar, desde que eu me convença de que esse direito seja legítimo. Ainda que se o chame de “folha corrida”.
E para Brasília o senhor pretende voltar?
Brasília é uma cidade afogada, seca, onde você não é uma pessoa, você é um cargo.
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Atualização em 20.08.10, texto de Idelber Avelar no blog “O biscoito fino e a massa”: “A estupefação dos vestais: Sobre “Ficha Limpa”
Os vestais da moralidade que formaram a base de sustentação cidadã da Lei “Ficha Limpa” estão estupefatos. Perplexos, constatam que a lei não mudou o Brasil! Que surpresa, os corruptos estão todos por aí! Já sancionada por Lula, a lei gerou 1.080 impugnações de candidaturas, 19 delas definitivas. Salvo desatenção deste blogueiro, nem um único dos mais visíveis apoiadores da lei até sua sanção-seja pessoa física ou jurídica–veio a público comemorar, saudar, aprovar ou celebrar em qualquer tom os resultados do “Ficha Limpa”. Suspeito que é porque os resultados são um desastre, e nem de longe autorizam a suposição de que encaminham o que os seus autores esperavam, ou seja, a tão propalada moralização da política (em nome da qual a coalizão de apoio ao “Ficha Limpa” aceitava dar uma pisadinha no Artigo 5o, inciso LVII, que estabelece a presunção de inocência na Carta da República).
Texto completo em:
http://www.idelberavelar.com/archives/2010/08/aestupefacao_dos_vestais…