Mentiras irresistíveis

por Jorge Furtado
em 25 de junho de 2010

Um dia desses, quando a Folha de S. Paulo publicou mais uma manchete que sabia não ser verdadeira (1), lembrei de outra mentira que virou manchete na mídia, esta da Agência Estado, amplamente repercutida por vários jornais no final de 2008, pior momento da crise financeira.

A manchete:

Governo “ensina” a fazer caipirinha no Diário Oficial

O texto da matéria tem momentos bem-humorados:

“Às vésperas do fim de semana, o Ministério da Agricultura resolveu ensinar aos apreciadores de bebidas alcoólicas a preparar uma autêntica caipirinha, bebida feita à base de cachaça, limão e açúcar, e que é capaz de alegrar até os mais preocupados com os rumos da economia brasileira em tempos de crise mundial. Para o Ministério, não basta misturar os três ingredientes aleatoriamente. É preciso ter critérios, como deixa claro o artigo 4º da Instrução Normativa (IN) 55, publicada na edição de ontem do Diário Oficial da União e assinada pelo ministro Reinhold Stephanes.” (…) “Para quem não gosta de caipirinha, o ministério oferece dicas sobre outros tipos de bebidas alcoólicas, inclusive para aqueles que não sentiram os efeitos da crise financeira”.

O sentido da manchete e das piadinhas do texto é evidente: o mundo rasgando pelas costuras, o sistema financeiro mundial em colapso e o governo Lula, esta cambada de pinguços, dando receita de cachaça no Diário Oficial!

Procure no Google “diário oficial” “receita de caipirinha”:

Os comentários nas dezenas de blogs que ainda trazem a “notícia” são previsíveis:

“Só faltava essa! Vê se pode!”

“O Brasil pode mais!”

“Primeiro implantam a Lei Seca… Depois ensinam a fazer a mistura… E ainda usando o Diário Oficial da União para esse fim. Quando Charles de Gaulle disse que esse país não é sério, ele tinha toda a razão… eu penso que na época, alguém havia falado para ele sobre os petralhas. Não se espante se amanha ou depois, os aloprados venham a usar o Diário Oficial para ensinar como enrolar um baseado.”

O fato, como a leitura atenta da própria notícia deixa claro, é que o Ministério da Agricultura publicou no Diário Oficial através de uma Instrução Normativa (I.N.), como é sua obrigação fazer, as especificações técnicas e científicas de uma bebida, assim como faz de todas as bebidas e alimentos disponíveis no mercado. É obrigação do Ministério agir assim, em defesa do consumidor: ninguém pode comercializar paçoca de chuchu com feijão e chamar de “rapadurinha de milho”, não pode vender leite de soja com corante e chamar de “suco de laranja”, isto fere o direito do consumidor, é a lei.

A manchete é engraçada mas não é notícia, ficaria bem num programa de humor. Não lembro de ter visto, mas aposto que o Casseta não perdeu esta bola picando. A Agência Estado, que publicou a matéria, sabe disso. Sabe que, ao publicar a “receita de caipirinha” no Diário Oficial, o governo, através do Ministério da Cultura, está cumprindo sua obrigação e uma determinação legal, agindo em defesa do cidadão. A Agência Estado sabe, mas não resiste à piada fácil da manchete que reforça preconceitos contra o governo Lula. A Agência Estado, e todos os jornais que publicaram a “notícia”, mentem em sua manchete com a clara intenção de prejudicar o governo.

O princípio básico do jornalismo é só publicar aquilo que se imagina ser verdade, embora talvez não seja, todos podem se enganar. O engano pode ter muitos nomes: bobeada, cochilo, confusão, descuido, deslize, equívoco, falha, imprecisão, impropriedade, incorreção, lapso, mancada, pecado, tropeço, vacilada. Publicar algo que se sabe não ser a verdade pode ser ficção ou mentira. Jornalismo é que não é.

xxx

(1) https://www.casacinepoa.com.br/blog/2010-06-23-a-folha-de-s-paulo-e-suas-manchetes-cretinas/

A “notícia” foi comentada aqui mesmo pela Liziane Kugland, em 25 de agosto de 2009:

“A suposta “receita de caipirinha” publicada no diário oficial “por engano”. Primeiro: isso é uma norma: é obrigatório e usual que o Ministério da Agricultura publique as regras para que bares e restaurantes, e também fabricantes, comerciantes, exportadores do produto engarrafado sigam padrões que possam ser controlados. É uma garantia de respeito ao direito do consumidor e é de praxe para quaisquer bebidas ou alimentos. Segundo: a manchete salientando o engano é canalha, para que o leitor apressado pense que alguma espécie de brincadeira vazou, que era algo secreto e que o governo foi novamente apanhado em erro. Ao se ler a matéria, pode-se constatar facilmente tanto que é uma norma quanto que o “engano” foi só ter sido publicado antes da data prevista, pois a instrução normativa ainda seria revisada. Mas contaram com a pressa do leitor. Sem falar que o assunto “bebida alcoólica” relacionada ao Lula faz seus detratores deitarem e rolarem.”