por Jorge Furtado
em 09 de outubro de 2010
No ano passado, em Recife, uma menina de 9 anos, grávida de gêmeos após abusos do padrasto, realizou o aborto legal. Na época, o arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, anunciou a excomunhão da garota, da mãe e dos médicos que atenderam a menina. O estuprador não foi excomungado.
José Serra, Indio da Costa e seus companheiros da imprensa demotucana tentam retomar o poder no Brasil, país que governaram por oito anos, antes de Lula. É difícil para a direita usar argumentos racionais, já que seu governo, que alterou a constituição em causa própria, manteve praticamente imóvel a desigualdade social, quebrou o país três vezes, provocou altas taxas de desemprego com índices de crescimento muito baixos e promoveu grossa - e nunca investigada - corrupção nos porões da privataria, terminou seu mandato com baixíssimo índice de aprovação popular.
A situação do Brasil hoje, depois de oito anos do governo petista, é outra: o país cresceu, distribuiu renda, gerou 15 milhões de empregos e incluiu no mercado consumidor mais de 30 milhões de brasileiros saídos da pobreza. As perspectivas são boas, com o petróleo do pré-sal trazendo ao país investimentos que geram empregos e com o governo aprovado por 80% dos brasileiros.
Portanto, sem poder falar de política ou do mundo racional, José Serra, Indio da Costa, alguns nazipastores, a direita e sua imprensa, apelam para o misticismo mais tacanho, tentando ganhar votos com argumentos religiosos.
No primeiros seis meses deste ano, 54.339 mulheres brasileiras foram hospitalizadas em decorrência de tentativas de interrupção de gravidez, abortos provocados. Os métodos mais utilizados são os medicamentos abortivos (falsificados, fabricados sem qualquer controle, vendidos em camelôs), além de chás caseiros e práticas estranhas, como “beber três goles de água e ficar pulando”, até procedimentos altamente perigosos, como a introdução de agulhas e talos, ou a utilização de permanganato de potássio e de substâncias cáusticas. Todos os anos, 250 mulheres brasileiras morrem em decorrência de abortos provocados.
José Serra, Indio da Costa, os nazipastores e a imprensa demotucana acham que este assunto é bom para ganhar votos. A campanha petista prefere não manter este assunto na pauta, melhor falar de outra coisa.
Em nome das 100 mil brasileiras que, todos os anos, são submetidas a uma legislação absurda que quer mandar para a cadeia meninas em pânico com uma gravidez indesejada e que, por isso, agridem o próprio corpo com agulhas de tricô ou soda cáustica, declaro aqui que sou inteiramente a favor da descriminalização do aborto no Brasil.
Não sou - nem nunca fui - filiado a partido algum, não faço parte de qualquer campanha que não pode, portanto, ser responsabilizada por minha opinião.
Quanto aos canalhas oportunistas que, em sua cobiça de poder, se utilizam da saúde alheia e da religiosidade que até ontem desprezavam, espero que, se houver um inferno, sejam todos mandados para lá.
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Atualizado em 11.10.10:
A República Fundamentalista Cristã
Vladimir Safatle
Folha de S.Paulo 11/10/2010
Um poder moderador vigia o debate político e impede que pautas de modernização social cheguem ao Brasil
FUNDADA EM 31 de outubro de 2010 após a expulsão dos infiéis do poder, a República Fundamentalista Cristã do Brasil apareceu em substituição à República Federativa do Brasil. Dela, ela herdou quase tudo, acrescentando uma importante novidade institucional: um poder moderador, pairando acima dos outros Três Poderes e composto pela ala conservadora do catolicismo em aliança com certos setores protestantes. Os mesmos setores que, nos EUA, deram suporte canino a George W. Bush. A função deste poder moderador consiste em vigiar o debate político e social, impedindo que pautas de modernização social já efetivadas em todos os países desenvolvidos cheguem ao Brasil.
Na verdade, a fundação desta nova República começou após uma eleição impulsionada pelo problema do aborto. Procurando uma tábua de salvação para uma candidatura que nunca decolara e que passou ao segundo turno exclusivamente por obra e graça de Marina Silva, José Serra resolveu inovar na política brasileira ao instrumentalizar politicamente os dogmas mais arcaicos deste que é o maior país católico do mundo.
Assim, sua mulher foi despachada pelos quatro cantos para alertar a população contra o fato de Dilma Rousseff apoiar “matar criancinhas” (conforme noticiou um jornal que declarou apoio explícito a seu marido). As portas de seu comitê de campanha foram abertas para os voluntários da TFP, com seus folhetos contra a “ameaça vermelha” capaz de perverter a família brasileira através da legalização da prostituição e do casamento gay (conforme noticiou o blog do jornalista Fernando Rodrigues). A internet foi invadida por mensagens “espontâneas” contra a infiel Dilma e o PNDH-3.
José Serra já havia dado a senha quando afirmou, em um debate, que legalizar o aborto seria uma “carnificina”. Que 15% das mulheres brasileiras entre 18 e 39 anos tenham abortado em condições indescritíveis, isto não era “carnificina”. Carnificina, para Serra, seria o Brasil importar esta prática tão presente na vida dos “bárbaros selvagens” que são os ingleses, franceses, alemães, norte-americanos, espanhóis, italianos, ou seja, todos para quem o aborto é, pasmem, uma questão de saúde pública e planejamento familiar.
Confrontada com esta guinada, a “classe média esclarecida” não se indignou. As clínicas privadas que fazem abortos ilegais continuariam funcionando. O direito sagrado de salvar a filha de classe média de uma gravidez indesejada continuaria intacto. Para tal classe, o discurso sobre “valores cristãos” era apenas uma radicalização eleitoral.
Quando o poder moderador, confiante em sua nova força, começou a exigir que o criacionismo fosse ensinado nas escolas, que o Estado subvencionasse atividades de proselitismo religioso travestidas de filantropia, já era tarde. Então, alguns lembraram, com tristeza, dos pais fundadores da República Federativa do Brasil, decididos a criar uma república laica onde os dogmas religiosos não seriam balizas da vida social. Uma república onde seria possível dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus. Uma República que morreu no dia 31 de outubro de 2010.
VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP.
http://www.brasilianasorg.com.br/blog/luisnassif/a-republica-fundamentalista-crista
Atualizado em 12.10.10:
A pauta religiosa foi proposta pela campanha de Serra e por aqueles que querem entregar o pré-sal a grandes empresas estrangeiras e por isso se converteram ao cristianismo (o pré-sal bem vale uma missa), acham que as mais de 100 mil mulheres brasileiras que fazem abortos todos os anos são criminosas que deveriam ser mandadas diretamente para a cadeia. Como disse a ex-primeira dama paulista Monica Serra, “Dilma quer matar criancinhas”.
A declaração de Monica Serra foi publicada no jornal “O Estado de São Paulo”, que declarou apoio a Serra:
“Anunciando a quem passasse: “Sou a mulher do Serra e vim pedir seu voto”, Mônica Serra, passou a tarde de hoje em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, acompanhada do candidato a vice na chapa encabeçada por José Serra (PSDB), Indio da Costa (DEM). Na cidade que foi governada pelo candidato ao senado Lindbergh Farias, do PT, nos últimos cinco anos, a mulher de Serra partiu para o ataque à adversária do marido, a petista Dilma Rousseff. A um eleitor evangélico, que citava Jesus Cristo como o “único homem que prestou no mundo” e que declarou voto em Dilma, a professora afirmou que a petista é a favor do aborto. “Ela é a favor de matar as criancinhas”, disse a mulher de Serra ao vendedor ambulante Edgar da Silva, de 73 anos.”
Sobre o tema religioso, recomendo “O Espírito do Ateísmo”, de André Comte-Sponville, onde ele reafirma seu humanismo radical citando Montaigne:
“Não há nada tão belo e legítimo quanto fazer bem e devidamente o papel de homem”.
Continua Sponville:
“É o humanismo em ato, e o contrário do niilismo. Trata-se de não ser indigno do que a humanidade fez de si mesma, nem portanto do que a civilização fez de nós. O primeiro dever, e o princípio de todos os outros, é viver e agir humanamente. Para tanto, a religião não basta, nem de tanto nos dispensa. O ateísmo tampouco”.
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Atualizado em 17.10.10:
Para trás é que se anda
Janio de Freitas
Folha de S. Paulo, domingo, 17 de outubro de 2010
A eleição presidencial degenera de vez. O passado retorna, sem cuidar nem sequer de disfarçar-se.
A exigência religiosa, legítima para os possuidores de crença, ultrapassa-os e volta não só a submeter a política em seu nível mais alto de participação democrática, que é a escolha pelo voto geral do futuro governante de toda a nação. Esse movimento vai também contra a liberdade de pensamento, na ação para impedir a opção política e cultural de candidatos e dos eleitores não religiosos ou religiosos sem extremismo. Mas a responsabilidade pelo retrocesso não é só do radicalismo político em nome da fé cristã. É também dos candidatos.
José Serra está a um passo de reproduzir atos e fases deploráveis, parte das quais vitimaram a ele próprio. Sua oferta de compra da adesão eleitoral -com promessa de aumento extra do salário mínimo, duplo aumento das aposentadorias com o salário mínimo e acréscimo específico, doação de dinheiro federal a mais de quatro mil municípios para aumentarem os professores do fundamental -segue duas matrizes notórias do populismo: Adhemar de Barros e Orestes Quércia. E depara-se com uma interrogação: onde ficam a defesa inflexível do “rigor fiscal”, tese permanente de José Serra, e suas persistentes acusações ao atual governo de gastos e aumentos excessivos? O velho populismo reanima-se.
O “santinho”, semelhante a cartão de crédito, que José Serra começou a distribuir na sexta-feira, em uma espécie de comício com professores de São Paulo, traz, de um lado, a sentença “Jesus é a verdade e a justiça”, seguida da assinatura de José Serra. Mas não só: tem a combinação das imagens de Jesus e do próprio Serra. Na outra face: “Serra é do bem”.
A biografia de Serra inclui um colar de disputas eleitorais, em perto de 25 anos. Em nenhuma delas, porém, o cristianismo do candidato se mostrou, nem Jesus, Deus e Maria foram feitos personagens de sua busca de votos. O nível político não cai sozinho: cai levado por pessoas.
Quem não está com Serra não é do bem, é a sugestão da sua carteirinha de associado a Cristo. Tal como os que não professavam, antes do golpe, posições conservadoras, eram (ou são) nacionalistas, ou defensores da Petrobras e de reformas estruturais. Todos “perigosos comunistas”, gente do mal, negadora de Deus. Fase que tanto custou ao país superar. E que a caravana comandada em Goiás por Serra, ostentando e beijando um terço, lembrou como imitação da Marcha com Deus pela Família e a Liberdade, puxada em Rio e São Paulo pelo reverendo da CIA, padre Payton, nos preparativos finais para o golpe.
Serra não precisa desses recursos. Como não precisava da campanha do medo em 2002, com a qual nada ganhou. E que retoma em versão nova, transferindo o medo a um governo de Lula para o medo à posição humanitária e científica contra a criminalização do aborto como princípio. Se vencer com esses recursos, Serra não terá por que orgulhar-se da vitória. Se perder, fica sob o risco de ser-lhe atribuído um papelão idêntico ao da campanha do “eu tenho medo”.
Dilma Rousseff mantém mais recato, mas não fugiu ao retrocesso. Sua candidatura nasceu à maneira da Velha República, escolha fechada e impositiva, patrocínio escancarado do presidente. Jamais escondeu, até sentir-se oprimida por católicos e evangélicos, seu apoio à descriminalização do aborto. A “mensagem aos cristãos” que lançou anteontem, por mais cuidadosa que seja em driblar uma inversão de posições, é uma concessão evidente contra as suas convicções. Com fins meramente eleitorais, culminância da vida de praticante cristã agora invocada quase a cada fala sua. O que também é, nos dois casos, uma forma do fisiologismo que envenena a política.
Seria uma desgraça termos superado a ameaça de Collor, cinco anos depois da democratização, para jogarmos no passado o que foi percorrido nos 25 anos de pós-ditadura. É o que está acontecendo sob nossos olhos indiferentes, no entanto.
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Para saber mais sobre o aborto, este grave problema de saúde pública :
Na Wikipedia:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Aborto_no_Brasil
Pesquisa mais atualizada sobre aborto no Brasil:
http://admin.paginaoficial1.tempsite.ws/admin/arquivos/biblioteca/abortonobrasil.doc7478.pdf
Aborto induzido em mulheres de baixa renda - dimensão de um problema:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-311X1991000200009&script=sci_arttext
Aborto supera câncer de mama em internações pelo SUS:
http://delas.ig.com.br/saudedamulher/aborto+supera+cancer+de+mama+em+internacoes+pelo+sus/n1237794630553.html
Atualizado em 06.10.10:
Texto do professor e filósofo Vladimir Safatle, da USP, no jornal Valor Econômico:
A candidatura Serra, durante todo o primeiro turno, nunca empolgou eleitoralmente. Não cresceu. Começou a crescer de verdade quando o Serra resolveu flertar com setores conservadores da sociedade brasileira, ou seja, os setores mais conservadores da igreja - teve votação expressiva no chamado cinturão do agronegócio - e também com a fina flor do pensamento conservador. Isso poderia parecer uma estratégia eleitoral. De fato, mostrou uma coisa que a gente não sabia: existe um pensamento conservador forte no Brasil e esse pensamento tem voto. Pode ser mobilizado por questões relativas à modernização dos costumes. Um exemplo, ainda no governo Fernando Henrique, quando José Gregori era secretário dos Direitos Humanos, aprovaram o PNDH 2 [Programa Nacional de Direitos Humanos], em 2002. E se você for ver, por exemplo, no capítulo sobre o aborto, ele é idêntico, fora uma ou duas palavras, ao PNDH 3, que foi criticado durante a campanha eleitoral. Parece que foi um processo deliberado, problemático, que coloca questões sobre o que vai ser sua candidatura daqui para a frente. Terminou prometendo que seria contra a lei da homofobia em encontro com pastores evangélicos. Com isso, Serra destampou uma franja eleitoral que estará presente no debate nos próximos quatro anos. Esse tipo de pauta não vai desaparecer. Vai voltar em vários momentos. A primeira questão é saber como isso vai se configurar. Até porque existe uma tendência mundial de construir um pensamento conservador que tem forte densidade eleitoral. A gente vê isso nos EUA, na Europa, e vai ver no Brasil de uma maneira ou de outra.
A questão do aborto foi um dos pontos mais baixos da história recente da política brasileira. Discordo terminantemente de que tenha sido um movimento espontâneo da sociedade civil. Ao que tudo indica, e a própria imprensa investigou isso, o candidato da oposição disparou por meio da central de boatos da internet toda essa questão. Existia um acordo tácito entre os dois grandes partidos políticos brasileiros, PT e PSDB, de que essa questão não seria posta em debate, porque vem de aspectos dos mais arcaicos da sociedade brasileira, e nenhum dos partidos queria jogar isso contra o outro justamente por esse arcaísmo. Quando o papa João Paulo II veio ao Brasil, houve um desconforto porque Ruth Cardoso [ex-primeira-dama] tinha se declarado a favor da legalização do aborto. E de repente temos a mulher do candidato da oposição [Monica Serra] dizendo que Dilma é a favor de matar criancinhas!
De fato meu lado perdeu, com muita clareza. Não sou filiado ao PT nem a partido algum. Todos aqueles para quem a modernização dos costumes é fundamental no interior do desenvolvimento das sociedades democráticas perderam. Não foi simplesmente uma questão ligada ao aborto. Foi uma maneira que o pensamento conservador encontrou de pautar a agenda do debate político neste país. Mostraram que têm força, têm voto e conseguem bloquear a discussão. E agora não vão sair, vão ficar. Havia uma espécie de ilusão de que não havia espaço para um partido que conseguisse mobilizar o pensamento conservador no Brasil. Isso não é verdade, eles demonstraram que têm força. Quando Serra colocou essa questão no debate, com clareza e todas as palavras, cobrando da adversária que ela se posicionasse, ele criou uma situação que, daqui por diante, é uma questão da política brasileira e todos vão ter de se posicionar a respeito.
Vladimir Safatle