O erro de Ambroise Paré

por Jorge Furtado
em 07 de fevereiro de 2011

Em 23 de agosto de 1572, o rei da França, Carlos IX, estava com problemas. No dia anterior, um católico radical chamado Maurevert tentara matar o almirante Gaspard de Coligny, um dos líderes huguenotes, provocando reações violentas por toda Paris. A revolta protestante poderia crescer e ameaçar o trono, enquanto a nobreza católica exigia forte repressão do exército. Carlos, então com 22 anos, deveria tomar uma decisão rápida, o que significava, todos sabiam, perguntar para sua mãe o que fazer. Sua mãe, Catarina de Médici, era o poder de fato na França e Carlos foi até seus aposentos no palácio para aconselhar-se. Encontrou-a, como era frequente, na companhia de seu médico, Ambroise Paré.

Ambroise Paré foi um grande médico. Ele descobriu que, ao contrário do que se pensava, os ferimentos de bala de chumbo não eram venenosos e o tratamento com óleo fervente, nada agradável ao paciente, era inútil. Passou a tratar os ferimentos com uma mistura de terebentina [1], gema de ovo e óleo de rosas, um primitivo anti-séptico que salvou muitas vidas. Paré também criou vários tipos de próteses, foi precursor do implante dentário, criou instrumentos cirúrgicos. Em 1552 tornou-se médico da família real francesa. Ele era, ao que se sabe, um huguenote.

Catarina ordenou ao seu filho que tratasse os revoltosos sem piedade, mas manteve seu médico em segurança, no palácio. Na madrugada de 24 de agosto, dia de São Bartolomeu, o exército de Carlos IX iniciou o massacre que durou vários meses e matou milhares de huguenotes por toda a França. Os números estimados de mortos vão de 30 a 100 mil.

Paré sobreviveu ao massacre dos huguenotes, a Catarina de Médici e a Carlos IX, foi médico de seu sucessor no trono, Henrique III, e morreu em Paris, aos 80 anos. Ambroise Paré foi um dos grandes gênios da renascença - pioneiro na cirurgia para correção do lábio leporino, algumas de suas descobertas para conter a hemorragia de membros amputados são usadas até hoje - mas talvez sua maior contribuição ao progresso humano se deva não a um de seus acertos, mas a um de seus erros.

Como se sabe, a igreja católica só admitia o sexo, mesmo entre casados, para a procriação. Qualquer forma de prazer desnecessário para o dever de ter filhos era pecado. Os teólogos católicos seguiam a concepção de Aristóteles: a mulher é um vaso receptor da semente do homem, e ponto. A natureza, segundo a igreja católica, não precisava do orgasmo feminino. Cinco séculos depois, o médico grego-romano Cláudio Galeno discordou de Aristóteles: a mulher, para gerar filhos, também precisa emitir uma semente, não é apenas um vaso de terra fértil.

O debate entre os partidários de Aristóteles e Galeno quanto à necessidade da “emissão da semente” pela mulher durou mais de mil anos, prevalecendo a idéia - defendida por São Paulo, São Jerônimo, Santo Agostinho - do “vaso receptor” e, portanto, da inutilidade do orgasmo feminino. Nos séculos XVI e XVII, vários médicos começam a contestar Aristóteles e a reviver Galeno, defendendo que a emissão da semente feminina é sim condição para que ela engravide e tenha filhos saudáveis. Ambroise Paré foi mais longe: afirmou somente haver concepção “quando ambas as sementes são emitidas ao mesmo tempo”. Segundo Paré, o orgasmo simultâneo seria fundamental para a concepção e portanto deveria, ao invés de ser considerado um pecado, ser incentivado pela igreja: bons cristãos devem gozar juntos.

A teoria de Paré e de outros defensores de Galeno venceu. Vários teólogos católicos passaram a afirmar que a mulher tinha o dever de gozar (e, alguns, de que ela cometia pecado ao não gozar), que o marido tinha o dever de prolongar o prazer da mulher até o orgasmo e, que se ele não acontecesse de forma natural, cabia a mulher - segundo a opinião de 14 dos 17 teólogos que participaram deste empolgante debate - chegar ao orgasmo fazendo carícias ela própria.

A diversão durou até o século XVIII, quando novas pesquisas e métodos científicos afirmaram não haver relação alguma entre a gravidez e o orgasmo feminino, descoberta que esfriou as camas católicas por mais de cem anos. O erro de Ambroise Paré pode ter sido diretamente responsável por três séculos de orgasmos femininos no ocidente cristão

Nos séculos XIX e XX a mulher passou a lutar por seu direito ao prazer (e ao voto, à educação, aos melhores salários, a presidir países e indicar a diretoria de Furnas, etc.) e o assunto saiu de moda, mas é curioso saber que as mais recentes pesquisas sobre reprodução afirmam que Ambroise Paré e os galenistas talvez não estivessem tão errados: o orgasmo feminino, com seus movimentos corporais e sua emissão de hormônios, pode sim ter papel importante na concepção. Talvez Paré tenha intuído ou descoberto que tudo na natureza tem um sentido. Não seria, logo o prazer, inútil.

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Sex in the Western world: the development of attitudes and behaviour, por Jean Louis Flandrin

Sugestões de Ambroise Paré aos maridos, em Thomas Walter Laqueur, Making sex: body and gender from the Greeks to Freud.

Mais sobre Ambroise Paré:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ambroise_Par%C3%A9

Ótimo texto do prof. Joffre M de Rezende:
http://usuarios.cultura.com.br/jmrezende/ambroise.htm

Mais sobre os huguenotes:
[http://pt.wikipedia.org/wiki/Huguenot](<http://pt.wikipedia.org/wiki/Huguenote

*>)

[1] A terebintina ou terebentina é um líquido obtido por destilação de resina de coníferas. É um bom solvente, vulgarmente chamado aguarrás, usado na mistura de tintas. A terebentina age como um anestésico local leve, ativando a circulação sanguínea do local afetado, promovendo alívio das dores de estruturas mais profundas. Este fármaco é indicado para o tratamento local de manifestações reumáticas, lumbago, artrite, bursite, nas dores musculares e nevralgias, torcicolos e contusões sendo componente de formuções como pomadas e bálsamos. Dermatites de contato, erupções cutâneas e urticárias, são relatadas com efeitos colaterais deste seu uso. http://pt.wikipedia.org/wiki/Terebintina

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“Morram os malditos huguenotes!”

O Paulo José, que sabe tudo, em entrevista ao portal Memória Globo conta uma história relacionada com Ambroise Paré.

PERGUNTA
Se a televisão o atraía.

PAULO JOSÉ
Não, porque a televisão só passou a ser interessante - não só para mim, como para ela mesma - depois de 1968. Ela só começou a ser interessante com Beto Rockfeller. Isso vem do Teatro de Arena de São Paulo, mas já é outra história.

Nos anos 1960, eu tive uma incursão pela televisão, na TV Excelsior de São Paulo. O Walter George Durst escreveu uma série para televisão chamada O caminho da medicina, e o Ziembinski era o diretor geral desse projeto. O programa mostrava a vida dos grandes médicos da história, por exemplo, Hipócrates, Averroes, grande médico árabe da antiguidade, Ambroise Paré, médico do tempo da Catarina de Médici. O Teatro de Arena foi contratado para fazer o suporte, o elenco de apoio para os pequenos papéis de todo esse seriado Os caminhos da medicina.

Agora, tinha uma peculiaridade: nessa época, já havia o videoteipe, e os programas eram gravados. Mas só tinha uma fita. Os programas não podiam ser editados, a não ser que você fizesse a edição mecânica de corte, mas isso danificava a fita, então evitavam cortar. Você gravava de bloco a bloco, quer dizer, de comercial a comercial. Você gravava o bloco inteiro do programa, como se fosse ao vivo, só que era gravado. Os blocos tinham em torno de 12 minutos cada um. Você começava e não podia errar. Se alguém errasse, tinha que voltar ao começo, porque não havia edição.

O que eu me lembro desse trabalho, em Os caminhos da medicina do Ambroise Paré, é que se passa na noite de São Bartolomeu, no dia 24 de agosto. Era na noite da matança dos huguenotes, dentro do palácio do Louvre, no casamento da rainha Margot com Henrique Di Navarra. Foi a Catarina de Médicis que regeu essa matança toda. O Henrique Di Navarra era protestante e a rainha Margot era católica, como os huguenotes. Houve uma grande traição no Palácio, onde hoje é o Louvre, onde estavam hospedados 2.000 convidados huguenotes. Todas as principais figuras protestantes da França, dos Países Baixos, da Inglaterra vieram para essa cerimônia de casamento extraordinária. Nessa data, aconteceu a chamada Noite de São Bartolomeu, que ficou para a história como uma noite sinistra. E o Ambroise Paré era um huguenote, médico da corte francesa, e era protestante também.

Nesse Os caminhos da medicina, conta-se a história dele. Havia um momento no final do quarto bloco, que era a cena da matança de espada, cenas com efeitos de destruição. Havia certa penumbra para facilitar a gravação, mas era complicadíssimo acontecer tudo sem erro. Ensaiamos durante uma tarde inteira. Às 22h, começou a gravação. Era meia-noite, mais ou menos, quando estávamos chegando nesse quarto bloco. E ia ficando mais difícil, os primeiros dois, três, quatro minutos, cinco, seis, oito… Passamos pela cena do corredor, das matanças, até chegar à câmera real, onde o Ambroise Paré havia se escondido. Uns soldados chegam do lado de fora, e alguém dizia assim: “Entrou por ali”. Já tinham se passado 12 minutos, e nós estávamos chegando ao final do quarto bloco, com tudo dando certo. Um soldado tinha que derrubar a porta - e já estava tudo “maquinado”, inclusive para fazer um “bum” -, o sujeito tinha que entrar, puxar a espada e dizer: “Morram os malditos huguenotes”, só isso. Então, nesse momento, ele errou: “Morram os malditos… Como é que é? Eu esqueci, meu Deus!”. Parou, parou. Volta, vai começar tudo de novo. Duas horas de descanso para montar o cenário de novo. Isso era um desespero. Diziam que iam esganar o figurante, e ele respondia: “Mas é que eu não sou ator e fiquei nervoso na hora”. Então, ensaiasse direito com o assistente: “Morram os malditos huguenotes, morram os malditos…”. Ele ficou falando a frase o tempo todo, enquanto ficamos esperando durante duas horas, porque tinham que remontar tudo, todas as coisas haviam sido demolidas, todos os ambientes. Duas horas depois, e o assistente ainda estava lá: “Morram os malditos huguenotes, morram os malditos huguenotes, morram os malditos huguenotes, morram os malditos huguenotes…”. Começamos a gravar. Veio de novo o “bum”, e o silêncio. Eu escutei: “Aaaaaiiii, corta!”. Mais duas horas para todo mundo, e o diretor mandou o assistente para casa. Tivemos que começar tudo de novo, e entrou um ator do elenco do Arena só para dizer essa frase… Às 6h, de manhã, estávamos gravando esse quarto bloco, com a frase: “Morram os malditos huguenotes”.

http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYP0-5271-257277,00.html