Onze não é um.

por Jorge Furtado
em 25 de março de 2011

Fui contra, desde o princípio, o projeto de lei complementar número 135/2010. Para descobrir este número, tive que recorrer às letras miúdas do site do Supremo Tribunal Federal, toda a imprensa só se refere à lei como “Ficha Limpa”. É mais do que compreensível que, com esse nome tão simpático, os leitores bem intencionados e sem muito tempo a perder com a política, apóiem entusiasticamente o projeto.

Não vou repetir meus argumentos, a quem se interessar, eles podem ser lidos aqui:

Quem vigia os vigilantes? (publicado em 4 de maio de 2010)
https://www.casacinepoa.com.br/blog/2010-05-04-quem-vigia-os-vigilantes/

Os ficha limpa (publicado em 19 de maio de 2010)
https://www.casacinepoa.com.br/blog/2010-05-19-os-ficha-limpa/

O assunto é complexo, cheio de implicações, como prova a votação apertada no STF, onde seis dos maiores juristas do país discordaram de cinco dos maiores juristas do país.

A intenção dos que apóiam a lei é evidentemente a melhor possível: impedir o acesso dos picaretas, malfeitores, ladrões, corruptos e outros delinquentes, com ou sem colarinho branco, aos cofres públicos e às câmaras legislativas. Mas “há distância entre intenção e gesto”.

Janio de Freitas, um dos melhores e mais dignos jornalistas em atividade, de quem sou leitor assíduo, é a favor do projeto, escreveu algumas vezes sobre isso. Seu artigo de hoje é a mais lúcida e equilibrada defesa que li da “Ficha Limpa”, muito acima das simplificações moralizantes que rendem manchetes demagógicas, comentários simplistas, charges bobas, além da ira santa do telepregadores.

O artigo de Janio tem, no entanto, um lead (texto em negrito sob o título do artigo ou manchete da matéria) com dois argumentos difíceis de aceitar: um por ser intelectualmente frágil e outro por não corresponder aos fatos, ocorrências estranhas num texto do Janio.

Diz o lead:

“No julgamento do STF, uma só pessoa decidiu os resultados das últimas eleições e das futuras”

Dizer que “uma só pessoa decidiu” a votação de 6 a 5 no STF é forçar a lógica muito além do aceitável. Onze não é um, seis também não. É bom lembrar que um presidente da república pode ser eleito por um voto de diferença e é comum as cortes de justiça decidirem por um voto. Isso em nada indica “insegurança jurídica”, ao contrário, a democracia depende dessa idéia, a decisão da maioria.

Se 11 podem virar 1 na estranha lógica do lead, mais difícil é aceitar a idéia de que o voto do ministro Fux decidiu o resultado das eleições “futuras”, não é verdade. O STF - por maioria dos votos - decidiu sobre a validade da lei para as eleições passadas, de 2010. A lei está em vigor, vale para 2012, pelo menos por enquanto, como informa o título.

É mais do que possível, é provável que a lei 135/2010 seja derrubada numa futura decisão do STF, já que ela é, na opinião de alguns renomados juristas, um flagrante desrespeito ao princípio básico da presunção de inocência: ninguém pode ser considerado culpado até que a justiça, em última instância, assim o considere. Mas isso não estava em pauta na votação do STF. O voto do ministro Fux, portanto, em nada decide os resultados das futuras eleições.

Espero que o resultado das futuras eleições dependa, como deve ser, dos eleitores. De preferência, de eleitores que sejam leitores.

xxx

Folha de S. Paulo, 25.03.11

PELO MENOS POR ENQUANTO
Janio de Freitas

No julgamento do STF, uma só pessoa decidiu os resultados das últimas eleições e das futuras

DIANTE DE UMA decisão por seis votos a cinco, dizer que o Supremo Tribunal Federal decidiu em conformidade com a Constituição, como foi dito no próprio tribunal, tem menos sentido do que concluir que os ministros votaram e decidiram em conformidade com suas cabeças, e pronto.

O que se passou no STF foi bem definido pelo ministro Joaquim Barbosa: ocorria ali, a título de julgamento da validade, ou não, da Lei da Ficha Limpa já nas eleições de 2010, o confronto entre duas correntes de opinião. De uma parte, os adeptos do artigo constitucional que exige ao menos um ano entre alteração da Lei Eleitoral e sua aplicação (art. 16); e, de outra parte, os que dão primazia ao artigo constitucional determinante de inelegibilidade “a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato” (art. 14).

O empate de cinco a cinco entre os ministros, vigente até a tarde de anteontem, foi decidido pelo voto de uma só pessoa, o novo ministro Luiz Fux, que não representa mais a Constituição do que qualquer dos demais integrantes do STF. Mas, na prática, ficou como a própria voz da Constituição. O juiz dos juízes.

Se o indicado para a vaga no tribunal fosse outro, e houve mais nomes em consideração, o lado hoje vencido poderia ser o vitorioso. Onde fica, portanto, a “conformidade com a Constituição” nessa vulnerabilidade ao acaso de uma indicação feita, entre outras, à presidente da República?

A voz original da Constituição lhe foi dada pela Constituinte. Nenhum dos 11 ministros se referiu, porém, ao que a Constituinte achou necessário dizer com o intervalo de um ano entre a alteração da Lei Eleitoral e sua aplicação. Como ficou registrado nos anais, a razão do prazo foi a preocupação em proteger as eleições de arranjos de última hora, os casuísmo feitos para prejudicar determinados candidatos, ou correntes de ideias ou partidos em condições legítimas de concorrer.

Nada a ver, portanto, com prevalência do intervalo sobre as necessárias moralidade pessoal e probidade administrativa, e outras exigências. Mais: estávamos, então, apenas três anos e meio distantes do regime autoritário e ainda sob muitos dos seus rescaldos -condição bastante explicativa e que não deveria ser esquecida sempre que se considere o teor da Constituição.

Argumento muito citado pelos contrários à Ficha Limpa já nos resultados eleitorais de 2010, a necessidade de evitar a “insegurança jurídica” foi outro aspecto interessante emitido pelo STF. Uma só pessoa, que acompanhou cinco ministros como poderia ter acompanhado os outros cinco, decidiu os resultados eleitorais das últimas eleições e das futuras.

Pode-se sentir segurança jurídica sob tal realidade? Eleitos que tiveram a posse recusada e agora serão empossados vão, pelos quatro ou oito anos vindouros, exercer seus mandatos no Congresso ou na administração pública. Estão legitimados, para tanto, por nada menos do que o Supremo Tribunal Federal.

Mas, sejam senadores ou deputados, prefeitos ou governadores, não poderão, no entanto, concorrer nas eleições para prefeito e vereador no ano que vem, quando a Ficha Limpa já terá cumprido a quarentena suprema. Segurança jurídica depende também de coerência e lógica, mas não se sabe onde ficaram.

Ao reafirmar seu voto favorável à validade da Ficha Limpa já nas eleições passadas, a ministra Ellen Gracie achou prudente deixar claro que o adiamento vitorioso não a extingue. E o fez com um toque de humor fervente: “A Lei da Ficha Limpa permanece, o STF não derrubou a lei. Pelo menos por enquanto”.

Nada seria possível acrescentar-lhe sobre o STF e a (in)segurança jurídica.

xx

Do SITE do STF:

Quarta-feira, 23 de março de 2011
Lei da Ficha Limpa não deve ser aplicada às Eleições 2010

Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a Lei Complementar (LC) 135/2010, a chamada Lei da Ficha Limpa, não deve ser aplicada às eleições realizadas em 2010, por desrespeito ao artigo 16 da Constituição Federal, dispositivo que trata da anterioridade da lei eleitoral. Com essa decisão, os ministros estão autorizados a decidir individualmente casos sob sua relatoria, aplicando o artigo 16 da Constituição Federal.

A decisão aconteceu no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 633703, que discutiu a constitucionalidade da Lei Complementar 135/2010 e sua aplicação nas eleições de 2010. Por seis votos a cinco, os ministros deram provimento ao recurso de Leonídio Correa Bouças, candidato a deputado estadual em Minas Gerais que teve seu registro negado com base nessa lei.

Relator

O ministro Gilmar Mendes votou pela não aplicação da lei às eleições gerais do ano passado, por entender que o artigo 16 da Constituição Federal (CF) de 1988, que estabelece a anterioridade de um ano para lei que altere o processo eleitoral, é uma cláusula pétrea eleitoral que não pode ser mudada, nem mesmo por lei complementar ou emenda constitucional.

Acompanhando o relator, o ministro Luiz Fux ponderou que “por melhor que seja o direito, ele não pode se sobrepor à Constituição”. Ele votou no sentido da não aplicabilidade da Lei Complementar nº 135/2010 às eleições de 2010, com base no princípio da anterioridade da legislação eleitoral.

O ministro Dias Toffoli acompanhou o voto do relator pela não aplicação da Lei da Ficha Limpa nas Eleições 2010. Ele reiterou os mesmo argumentos apresentados anteriormente quando do julgamento de outros recursos sobre a mesma matéria. Para ele, o processo eleitoral teve início um ano antes do pleito.

Em seu voto, o ministro Marco Aurélio também manteve seu entendimento anteriormente declarado, no sentido de que a lei não vale para as eleições de 2010. Segundo o ministro, o Supremo não tem culpa de o Congresso só ter editado a lei no ano das eleições, “olvidando” o disposto no artigo 16 da Constituição Federal, concluiu o ministro, votando pelo provimento do recurso.

Quinto ministro a se manifestar pela inaplicabilidade da norma nas eleições de 2010, o decano da Corte, ministro Celso de Mello, disse em seu voto que qualquer lei que introduza inovações na área eleitoral, como fez a Lei Complementar 135/2010, interfere de modo direto no processo eleitoral - na medida em que viabiliza a inclusão ou exclusão de candidatos na disputa de mandatos eletivos - o que faz incidir sobre a norma o disposto no artigo 16 da Constituição. Com este argumento, entre outros, o ministro acompanhou o relator, pelo provimento do recurso.

Último a votar, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Cezar Peluso, reafirmou seu entendimento manifestado nos julgamentos anteriores sobre o tema, contrário à aplicação da Lei Complementar nº 135/2010 às eleições do ano passado. “Minha posição é bastante conhecida”, lembrou.

Peluso ressaltou o anseio comum da sociedade pela probidade e pela moralização, “do qual o STF não pode deixar de participar”. Para o presidente, “somente má-fé ou propósitos menos nobres podem imputar aos ministros ou à decisão do Supremo a ideia de que não estejam a favor da moralização dos costumes políticos”. Observou, porém, que esse progresso ético da vida pública tem de ser feito, num Estado Democrático de Direito, a com observância estrita da Constituição. “Um tribunal constitucional que, para atender anseios legítimos do povo, o faça ao arrepio da Constituição é um tribunal em que o povo não pode ter confiança”, afirmou.

O ministro aplicou ao caso o artigo 16, “exaustivamente tratado”, e o princípio da irretroatividade “de uma norma que implica uma sanção grave, que é a exclusão da vida pública”. A medida, para Peluso, não foi adotada “sequer nas ditaduras”.

Divergência

Abrindo a divergência, a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha votou pela aplicação da Lei Complementar nº135/10 já às eleições de 2010, negando, assim, provimento ao Recurso Extraordinário 633703, interposto por Leonídio Bouças, que teve indeferido o registro de sua candidatura para deputado estadual pelo PMDB de Minas Gerais, com fundamento na LC 135.

A ministra disse que, ao contrário da manifestação do relator, ministro Gilmar Mendes, não entende que a LC tenha criado desigualdade entre os candidatos, pois todos foram para as convenções, em junho do ano passado, já conhecendo as regras estabelecidas na LC 135.

Quanto a seu voto proferido na Medida Cautelar na ADI 4307, ela lembrou que, naquele caso, de aplicação da Emenda Constitucional nº 58/2009 retroativamente às eleições de 2008, votou contra, pois se tratou de caso diferente do da LC 135, esta editada antes das convenções e do registro de candidatos.

Ao votar, o ministro Ricardo Lewandowski, que também exerce o cargo de presidente do TSE, manteve entendimento no sentido de negar provimento ao RE, ou seja, considerou que a Lei da Ficha Limpa deve ser aplicável às Eleições 2010. Segundo ele, a norma tem o objetivo de proteger a probidade administrativa e visa a legitimidade das eleições, tendo criado novas causas de inelegibilidade mediante critérios objetivos. Também ressaltou que a lei foi editada antes do registro dos candidatos, “momento crucial em que tudo ainda pode ser mudado”, por isso entendeu que não houve alteração ao processo eleitoral, inexistindo o rompimento da igualdade entre os candidatos. Portanto, Lewandowski considerou que a disciplina legal colocou todos os candidatos e partidos nas mesmas condições.

Em seu voto, a ministra Ellen Gracie manteve seu entendimento no sentido de que a norma não ofendeu o artigo 16 da Constituição. Para ela, inelegibilidade não é nem ato nem fato do processo eleitoral, mesmo em seu sentido mais amplo. Assim, o sistema de inelegibilidade - tema de que trata a Lei da Ficha Limpa - estaria isenta da proibição constante do artigo 16 da Constituição.

Os ministros Joaquim Barbosa e Ayres Britto desproveram o recurso e votaram pela aplicação imediata da Lei da Ficha Limpa. O primeiro deles disse que, desde a II Guerra Mundial, muitas Cortes Supremas fizeram opções por mudanças e que, no cotejo entre o parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição Federal (CF), que inclui problemas na vida pregressa dos candidatos entre as hipóteses da inelegibilidade, e o artigo 16 da CF, que estabelece o princípio da anterioridade, fica com a primeira opção.

Em sentido semelhante, o ministro Ayres Britto ponderou que a Lei Complementar nº 135/2010 é constitucional e decorre da previsão do parágrafo 9º do artigo 14 da CF. Segundo ele, faz parte dos direitos e garantias individuais do cidadão ter representantes limpos. “Quem não tiver vida pregressa limpa, não pode ter a ousadia de pedir registro de sua candidatura”, afirmou.

Repercussão geral

O STF reconheceu, por unanimidade, a repercussão geral da questão, e autorizou que os ministros apliquem, monocraticamente, o entendimento adotado no julgamento de hoje aos demais casos semelhantes, com base no artigo 543 do Código de Processo Civil. EC,FK,CF,MB/CG

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