por Jorge Furtado
em 24 de outubro de 2011
São condições fundamentais para a sobrevivência de uma democracia o direito ao voto em eleições livres, a existência de partidos políticos e seus filiados, a liberdade de expressão e de informação e a vigência de um estado de direito, onde todos se submetem à lei. Desde Montesquieu e na maioria das democracias modernas, o poder é separado em três: executivo, legislativo e judiciário.
O sistema eleitoral brasileiro é razoável, embora haja distorções na representatividade no Congresso e o sistema de suplentes do Senado seja uma excrescência. O quadro partidário brasileiro é confuso e sofre constantes modificações, acho que ainda não tivemos duas eleições com as mesmas regras, mas a filiação e a organização partidária são livres, desde que o estatuto do partido não desrespeite a constituição, por exemplo, pregando a discriminação racial, religiosa, de etnia ou de classe. Há 29 partidos em atividade, mais alguns esperando registro. Temos liberdade de informação e expressão, órgãos de imprensa publicam informações sem censura, sites, blogs e redes sociais publicam o que querem.
Vivemos, portanto, numa democracia. Os políticos eleitos tem a obrigação de prestar contas dos seus atos, a sociedade tem o direito de se informar e se expressar e todos podem recorrer à justiça caso sintam que seus direitos foram desrespeitados.
Desde o fim da Lei de Imprensa, criada, não por acaso, pela ditadura, temos um vazio na legislação brasileira quanto aos direitos do cidadão contra eventuais abusos da imprensa. Recorrer à justiça para exigir retratação, direito de resposta ou indenização contra matéria caluniosa é ineficaz, já que os processos demoram tanto que, quando e se concluídos, a matéria que os gerou já foi quase esquecida, embora os crimes contra a honra tenham consequência duradoura. Calúnias e ofensas vendem muitos jornais e revistas e garantem altos índices de audiência, mas as indenizações estabelecidas pela justiça são quase sempre irrisórias. No Brasil, caluniar e ofender são atividades altamente lucrativas.
A democracia exige tolerância. A tudo? Não. Como disse Umberto Eco, “para sermos tolerantes temos que estabelecer o limite do intolerável”.
Fica combinado então que não vale:
- Não vale o repórter invadir a casa de alguém para colher ou (quem sabe?) plantar informações, como fez recentemente um repórter da Veja na casa do ex-ministro José Dirceu. A invasão da residência de alguém por um repórter - fato gravíssimo e praticamente ignorado pela imprensa - é tão inadmissível quanto um assalto comum ou o uso da polícia, por eventuais governos, para perseguir adversários políticos. Ou a imprensa quer o fim do direito à propriedade e a privacidade?
- Não vale chamar de “censura” a decisão judicial que proíbe a publicação de determinada matéria. Se um adversário político (ou empresário concorrente, ou ambos) contrata um araponga para grampear ilegalmente telefones de seus desafetos e, seletivamente, vasa estas informações para a imprensa, o prejudicado tem o direito de recorrer à justiça exigindo que a publicação seja proibida. O judiciário, por sua vez, deve julgar o caso e proferir a sentença. À imprensa cabe cumprir a decisão da justiça, não há censura alguma. Ou a imprensa quer a extinção do judiciário?
- Não vale dar ampla divulgação, sem apurar fatos ou checar informações, às acusações sem provas contra a honra de alguém, como acaba de fazer, mais uma vez, a imprensa brasileira.
No dia 01/04/2010 notícia do Correio Braziliense informa que o PM João Dias Ferreira foi preso, numa investigação determinada pelo Ministério Público a partir de diligência do Ministério dos Esportes. A acusação é que ele liderava um grupo que falsificou 49 notas frias para roubar cerca de 2 milhões destinado à formação de crianças carentes em programas sociais.
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Um ano e meio depois, no dia 17/10/2011, a manchete da revista Veja afirma: “O ministro recebia o dinheiro na garagem”. No texto da matéria, diz a fonte da informação, o mesmo PM João Dias Ferreira: “Por um dos operadores do esquema, eu soube na ocasião que o ministro recebia dinheiro na garagem”.
A mesma fonte, sete dias depois: “Policial diz que não tem provas específicas contra Orlando Silva”. O policial militar João Dias Ferreira disse que não possui provas do envolvimento direto do atual ministro do Esporte, Orlando Silva, e de seu antecessor, Agnelo Queiroz, no suposto esquema de desvios de recursos públicos da pasta. O policial militar negou que tenha gravado diálogos de Orlando Silva. “Em nenhuma delas [das gravações] tem a voz do ministro”.
E agora? A informação da manchete, de que o “Ministro recebia dinheiro na garagem” era verdadeira ou não? Será “despublicada”? Como fica a honra do ministro? E a credibilidade da imprensa?
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Os acusadores do ministro foram flagrados (alguns, presos), por desviar dinheiro público destinado a programas sociais. São, para dizer o mínimo, fontes cujas informações deveriam ser melhor averiguadas, antes de servirem de munição para atacar a honra de alguém.
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Numa democracia, o direito à informação deve estar, como todos os direitos, sujeito à lei. E a lei deve proteger o cidadão contra eventuais abusos do poder, seja ele político ou econômico. Ou não?
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Em todos os jornais e veículos, e também nos blogs e sites, há militantes políticos mais ou menos disfarçados de jornalistas. Em todos os jornais e veículos também há bons jornalistas, profissionais que precisam ser bem remunerados para fazer o insubstituível trabalho do jornalismo investigativo: a busca diária pela verdade factual. Há que saber distingui-los, como ensina, neste vídeo, um excelente jornalista, Caco Barcelos, da Tv Globo.
A era da selvageria
Enviado por luisnassif, seg, 24/10/2011 - 21:28
Autor: Luis Nassif
O vale-tudo da informação chegou a um ponto sem retorno.
Historicamente, as jovens gerações de jornalistas entram com todo gás, querendo fazer carreira e, para tanto, seguindo os critérios de avaliação das direções. Se os critérios são tortos, forma-se uma geração torta. Foi assim com o rescaldo da campanha do impeachment, que consagrou os profissionais que mais atentaram contra os princípios jornalísticos, os que mais inventaram notícias, que se apossaram de matérias de terceiros.
O momento atual é o mais escabroso da moderna história da imprensa brasileira.
Na transição de gerações, existem os jornalistas experientes, servindo de referência e de moderação para os mais apressados. Cabe a essas figuras referenciais ensinar os limites entre jornalismo e ficção, o respeito aos fatos e as técnicas que permitam tornar as matérias atraentes sem apelar para a ficção ou para os ataques difamadores. Principalmente, cabe a eles mostrar os valores universais da civilização, o respeito ao direito sagrado da reputação, o pressuposto de que as acusações precisam vir acompanhadas de provas ou indícios relevantes, o direito de se ouvir, sem viés, a defesa do acusado, o uso restrito do jornalismo declaratório.
A questão é que esse meio campo está com lacunas.
O episódio Orlando Silva mostrou jornalistas consagrados, que deveriam fazer o contraponto, ajudando a criar o clima de expectativa em cima das capas de Veja. São jornalistas que estão fartos de saber que a revista não segue princípios jornalísticos, que mente, difama, blefa, que promete provas que nunca aparecem. Mas não se pejaram de aproveitar o embalo para atacar adversários históricos.
Outros jornalistas, com história e credibilidade, preferiram recolher-se ao seu próprio trabalho, pela notória impossibilidade de remar contra uma tendência irreversível de consolidação do jornalismo de esgoto.
Fazem bem em se poupar e não tentar remediar o irremediável.
http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-era-da-selvageria
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Atualizado em 8.11.11:
Maria Inês Nassif (*)
A corrupção do sistema político merece uma reflexão para além das manchetes dos jornais tradicionais. Em especial neste momento que o país vive, quando a nova democracia completou 26 anos e a política, que é a sua base de representação, se desgasta perante a opinião pública. Este é o exato momento em que os valores democráticos devem prevalecer sobre todas as discordâncias partidárias, pois chegou no limite de uma escolha: ou diagnostica e aperfeiçoa o sistema político, ou verá sucumbi-lo perante o descrédito dos cidadãos.
O país pós-redemocratização passou por um governo que foi um fracasso no combate à inflação, um primeiro presidente eleito pelo voto direto pós-ditadura apeado do poder por denúncias de corrupção, dois governos tucanos que, com uma política antiinflacionária exitosa, conseguiram colocar o país no trilho do neoliberalismo que já havia grassado o mundo, e por fim dois governos do PT, um partido de difícil assimilação por parcela da população. Nesse período, a mídia incorporou como poder próprio o julgamento e o sentenciamento moral, numa magnitude tal que vai contra qualquer bom senso.
Este é um assunto difícil porque pode ser facilmente interpretado como uma defesa da corrupção, e não é. Ou como questionamento à liberdade de imprensa, e está longe disso. O que se deve colocar na mesa, para discussão, é até onde vai legitimidade da mídia tradicional brasileira para exercer uma função fiscalizadora que invade áreas que não lhes são próprias. Existe um limite tênue entre o exercício da liberdade de imprensa na fiscalização da política e a usurpação do poder de outras instituições da República.
Outra questão que preocupa muito é que a discussão emocional, fulanizada, mantida pelos jornais e revistas também como um recurso de marketing, têm como maior saldo manter o sistema político tal como é. É impossível uma discussão mais profunda nesses termos: a escandalização da política e a demonização de políticos trata-os como intrinsicamente corruptos, como pessoas de baixa moral que procuram na atividade política uma forma de enriquecimento privado. Ninguém se pergunta como os partidos sobrevivem mantidos por dinheiro privado e que tipo de concessão têm que fazer ao sistema.
Desde Antonio Gramsci, o pensador comunista italiano que morreu na masmorra de Mussolini, a expressão “nenhuma informação é inocente” tem pontuado os estudos sobre o papel da imprensa na formulação de sensos comuns que ganham a hegemonia na sociedade. Gramsci já usava o termo “jornalismo marrom” para designar os surtos de pânico promovidos pela mídia, de forma a ganhar a guerra da opinião pública pelo medo.
No Brasil atual, duas grandes crises de pânico foram alimentadas pela mídia tradicional brasileira no passado recente. Em 2002, nas eleições em que o PT seria vitorioso contra o candidato do governo FHC, a mídia claramente mediou a pressão dos mercados financeiros contra o candidato favorito, Luiz Inácio Lula da Silva. Tratava-se, no início, de fixar como senso comum a referência “ou José Serra [o candidato tucano] ou o caos”.
Depois, a meta era obrigar Lula e o PT ao recuo programático, garantindo assim a abertura do mercado financeiro, recém-completada, para os capitais internacionais. Em 2005, na época do chamado “mensalão”, o discurso do caos foi redirecionado para a corrupção. Politicamente, era uma chance fantástica para a oposição ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva: a única alternativa para se contrapor a um líder carismático em popularidade crescente era tirar de seu partido, o PT, a bandeira da moralidade. A ofensiva da imprensa, nesse caso, não foi apenas mediadora de interesses. A mídia não apenas mediava, mas pautava a oposição e era pautada por ela, num processo de retroalimentação em que ela própria [a mídia] passou a suprir a fragilidade dos partidos oposicionistas. Ao longo desse período, tornou-se uma referência de poder político, paralelo ao instituído pelo voto.
Eleita Dilma Rousseff, a oposição institucional declinou mais ainda, num país que historicamente voto e poder caminham juntos, e ao que tudo indica a mídia assumiu com mais vigor não apenas o papel de poder político, mas de bancada paralela. Dilma está se tornando uma máquina de demitir ministros. Nas primeiras demissões, a ofensiva da mídia deu a ela um pretexto para se livrar de aliados incômodos, nas complicadas negociações a que o Poder Executivo se vê obrigado em governos de coalizão num sistema partidário como o brasileiro. Caiu, todavia, numa armadilha: ao ceder ministros, está reforçando o poder paralelo da mídia; em vez de virar refém de partidos políticos que, de fato, têm deficiências orgânicas sérias, tornou-se refém da própria mídia.
As ondas de pânico criadas em torno de casos de corrupção, desde Collor, têm servido mais a desqualificar a política do que propriamente moralizar a nossa democracia. Mais uma vez, volto à frase de Gramsci: não existe notícia inocente. O Brasil saído da ditadura já trazia, como herança, um sistema político com problemas que remontam à Colônia. O compadrio, o mandonismo e o coronelismo são a expressão clássica do que hoje se conhece por nepotismo, privatização da máquina pública e falha separação entre o público e o privado. A política tem sido constituída sobre essas bases e, depois de cada momento autoritário e a cada período de redemocratização no país, seus problemas se desnudam, soluções paliativas são dadas e a cultura fica. Por que fica? Porque é a fonte de poderes - poderes privados que podem se sobrepor ao poder público legitimamente constituído.
O sistema político é mantido por interesses privados, e é de interesse de gregos e troianos que assim permaneça. Segundo levantamento feito pela Comissão Especial da Câmara que analisa a reforma política, cerca de 360 deputados, em 513, foram eleitos porque fizeram as mais caras campanhas eleitorais de seus Estados. Com dinheiro privado. Em sã consciência, com quem eles têm compromissos? Eles apenas tiveram acesso aos instrumentos midiáticos e de marketing político cada vez mais sofisticados porque foram financiados pelo poder econômico. É o interesse privado quem define se o dinheiro doado aos candidatos e partidos é lícito ou ilícito.
O dinheiro do caixa dois passou a fazer parte desse sistema. Não existe nenhum partido, hoje, que consiga se financiar privadamente - como define a legislação brasileira - sem se envolver com o dinheiro das empresas; e são remotíssimas as chances de um político financiado pelo poder privado escapar de um caixa dois, porque normalmente é o caixa dois das empresas que está disponível. Num sistema eleitoral onde o dinheiro privado, lícito e ilícito, é o principal financiador das eleições, ocorre a primeira captura do sistema político pelo poder privado. E isso não acaba mais.
Esse é o âmago de nosso sistema político. A democratização trouxe coisas fantásticas para a política brasileira, como o voto do analfabeto, a ampla liberdade de organização partidária e a garantia do voto. Mas falhou no aperfeiçoamento de um sistema que obrigatoriamente teria de ser revisto, no momento em que o poder do voto foi restabelecido pela Constituição de 1988.
Num sistema como esse, por qualquer lado que se mexa é possível desenrolar histórias da promiscuidade entre o poder público e o dinheiro privado. Por que isso não entra, pelo menos, em discussão? Acredito que a situação permaneça porque, ao fim e ao cabo, ela mantém o poder político sob o permanente poder de chantagem privado. De um lado, os financiadores de campanhas se apoderam de parcela de poder. De outro, um sistema imperfeito torna facilmente capturável o poder do voto também por aparelhos privados de ideologia, como a mídia. Como nenhuma notícia é inocente, a própria pauta leva a relações particulares entre políticos e o poder econômico, ou entre a máquina pública e o partido político. A guerra permanente entre um governo eleito que tem a oposição de uma mídia dominante é alimentada pelo sistema.
O apoderamento da imprensa é ainda maior. Se, de um lado, a pauta expressa seu imenso poder sobre a política brasileira, ela não cumpre o papel de apontar soluções para o problema. Não existe intenção de melhorá-lo, de atacar as verdadeiras causas da corrupção. Apesar da imensa caça às bruxas movida pela mídia contra os governos, em nenhum momento essa sucessão de escândalos, reais ou não, incluíram seriamente a opinião pública num debate sobre a razão pela qual um sistema inteiro é apropriado pelo poder privado, inclusive e principalmente porque não se questiona o direito de apropriação do poder público pelo poder privado. A mídia tradicional não fez um debate sério sobre financiamento de campanha; não dá a importância devida à lei do colarinho branco; colocou a CPMF, que poderia ser um importante instrumento contra o dinheiro ilícito que inclusive financia campanhas eleitorais, no rol da campanha contra uma pretensa carga insuportável de impostos que o brasileiro paga.
Pode fazer isso por superficialidade no trato das informações, por falta de entendimento das causas da corrupção - mas qualquer boa intenção que porventura exista é anulada pelo fato de que é este o sistema que permite à imprensa capturar, para ela, parte do poder de instituições democráticas devidamente constituídas para isso.
(*) Texto apresentado no Seminário Internacional sobre a Corrupção, dia 7 de novembro de 2011, em Porto Alegre.