por Jorge Furtado
em 13 de fevereiro de 2012
Ele foi um dos grandes gênios da história da humanidade, não há dúvidas de que foi o maior em sua arte. Nasceu na Inglaterra, mas suas criações são admiradas em todos os países, de qualquer língua, e sobrevivem ao tempo. Ele sabia, como poucos, misturar tragédia e comédia. Era ator, dominava a linguagem dramática a partir do palco, de olho no público, de ouvido aberto e atento para a respiração da platéia. Fez, em vida, um sucesso de público e crítica sem precedentes e enriqueceu com seu trabalho. Era um mestre, dominava muitas diferentes técnicas do seu ofício: a palavra, a música, o gesto. Ele deixou muitas obras primas e a maior delas - na opinião de muita gente - foi concebida num momento de dor, logo após a perda de um filho. Será por acaso que esta obra fale da dor da separação de pai e filho, da agonia de viver neste mundo, abandonado pelo pai?
Estou falando de Shakespeare, é claro, e também de Charles Chaplin. As obras primas de cada um, Hamlet (escrita entre 1599 e 1601) e O garoto (filmado em 1920, lançado em 1921), foram feitas após as mortes de Hamnet (ou Hamlet), primeiro e único filho homem de William e sua esposa Anne, em agosto de 1596, e Norman, primeiro e único filho de Chaplin e Mildred, sua primeira esposa, em julho de 1919.
Reduzir a criação de uma obra de arte, seja ela qual for, a um simples reflexo do estado de espírito de seu criador é rematada tolice, tão grande quanto ignorá-lo. Muito já se disse e escreveu sobre as relações entre a peça de Shakespeare e a morte de seu filho homônimo, mas só agora, através da extraordinária biografia escrita por David Robinson (Chaplin, uma biografia definitiva, Editora Novo Século), estou conhecendo em detalhes o gênio de Charles Chaplin.
Vi todos os seus longas, alguns deles várias vezes, e quase todos os seus curtas. Li há bastante tempo sua autobiografia (Minha Vida, Editora José Olympio), que tem momentos comoventes de sua infância e algumas boas histórias, mas é um livro de memórias, escritas mais com carinho e gentileza do que precisão, onde a modéstia do autor o impede de sublinhar a excelência de seus próprios feitos. A biografia de Robinson, ao contrário, é o trabalho de uma vida, obra de um pesquisador apaixonado pelo objeto de seu livro, mas rigoroso em suas análises, sempre baseadas em documentos e várias fontes, algumas contraditórias.
Estou lendo o livro e revendo os filmes, todos disponíveis na internet, cada vez mais abismado com o tamanho do talento de Chaplin, este londrino de infância muito pobre, parte dela vivida num orfanato, que se tornou o maior artista do século XX, o maior gênio da história do cinema, arte da qual foi um dos inventores.
O livro de David Robinson é uma pesquisa admirável, uma aula de cinema e de história. Robinson é crítico e pesquisador, especializado na era do cinema mudo, e não se estende em fofocas. A descrição minuciosa que faz dos métodos de trabalho de Chaplin como diretor, roteirista, ator, montador e produtor, são leitura obrigatória a quem imagina um dia fazer um filme, ou simplesmente a quem quer entender melhor como eles funcionam.
Chaplin era um mestre do humor, teve grandes professores e sabia todos os truques. Tocava violino muito bem, gostava de poesia e, sim, leu Shakespeare, do começo ao fim. Ele não escrevia os roteiros dos seus primeiros filmes e foi praticamente o inventor do “take 2”, uma nova tomada da cena, com o objetivo de fazê-la melhor. Ninguém, nem mesmo D. W. Griffith, refilmava uma tomada, a menos que ela tivesse sido interrompida por algum problema. Chaplin foi o primeiro a repetir tomadas com uma justificativa simples: pode ficar melhor. Chaplin também foi o inventor, no cinema, das comédias tristes, meu gênero preferido.
Ator, comediante e brilhante acrobata, Chaplin estreou no teatro com 11 anos, numa trupe de atores infantis. Em 1903, aos 14 anos, numa peça unanimemente detestada pelos jornais e pelo público, teve o seu talento reconhecido por vários críticos. Um deles, infelizmente anônimo, depois de massacrar a peça, termina seu texto com uma profecia: “Charlie Chaplin, um ator infantil brilhante e vigoroso, fez de Sammy um papel enormemente divertido. Nunca ouvi falar do tal menino, mas espero grandes feitos dele em um futuro próximo” .
A espera não foi em vão. Em 1915, quando a “febre Chaplin” tomou o mundo, ele fazia mais de um filme por mês e se tornou o maior salário da história, com um rendimento anual só comparável ao de reis e rainhas. Em 1917, vários gerentes de salas de cinema relataram que, após a exibição dos seus filmes, era necessário apertar os parafusos das cadeiras, afrouxados pelas risadas do público. As festas à fantasia estavam na moda, mas os editores das colunas sociais reclamavam que elas eram arruinadas porque “nove entre dez homens aparecem vestidos de Chaplin”.
Ben Hecht, futuro dramaturgo e roteirista, então com 23 anos, escreveu sobre ele:
“Ele anda cuidadosamente, manso, com uma infinita filosofia. Charles Chaplin, com a graça de um bufão vulgar e a alma de um artista do mundo. Ele anda, ele tropeça, ele dança, ele cai. Suas viradas inimitáveis liberam torrentes de alegria, inocentes como a água de uma nascente. Por traz de suas crueldades, suas obscenidades, as contrações ultrajantes e sem arte, sua “divindade” brilha. Ele é o Deus das multidões. Ele é uma criança e um palhaço. Ele é um moleque de rua e um artista. Ele é a encarnação do gênio infantil, latente e imperfeito, que jaz soterrado sob a carne sem fibra de seus adoradores. Eles o criaram a sua imagem. Ele é a multidão em duas pernas. Eles o amam e riem. Frutas a Om. Glória a Zeus. Misericórdia, Jesus. Louvado seja Alá. Tiremos o chapéu a Charlie Chaplin.”.
Fiquei feliz em saber que o meu Chaplin preferido, “A corrida do ouro”, era também o dele, o filme pelo qual ele gostaria de ser lembrado. Entre as muitas boas histórias do livro está a do lançamento do filme em Berlin, em 1925. Robinson conta que durante a cena da “dança dos pãezinhos”, o público que lotava o cinema Capitol foi ao delírio, rindo e aplaudindo o filme. “O gerente do cinema, com uma admirável presença de espírito, correu até a sala de projeção e instruiu os projecionistas a voltar o filme e passar a cena de novo. A orquestra pegou a deixa e a reprise foi saudada com um aplauso ainda mais estrondoso”.
Aqui, a “dança dos pãezinhos”, o primeiro, senão o único, bis durante a exibição de um filme.
Uma única resalva à excelente edição do livro, que tem muitas notas, vários apêndices, com filmografia completa e fichas técnicas detalhadas: a falta dos títulos originais em inglês, o que dificulta a busca dos filmes na internet. Nada que uma passada pelo IMDB não resolva.
Charles Chaplin no IMDB:
http://www.imdb.com/name/nm0000122/
Antes ou depois de ler “Chaplin, uma biografia definitiva”, de David Robinson, veja o documentário “Unknown Chaplin”, direção de Kevin Brownlow e David Gill, aqui com legendas em português: