Netos de Montaigne

por Jorge Furtado
em 23 de março de 2012

Somos todos, nos facebooks, blogs, colunas semanais, twiters e tais, netos de Michel de Montaigne, um sujeito extraordinário que não merecia o desgosto de tão opaca descendência. Foi ele o primeiro a trancar-se num quarto e falar sobre o próprio umbigo, ninguém fez isso antes dele e muito poucos, depois dele, chegaram perto de ofuscar-lhe o brilho. Shakespeare, que de bobo não tinha nada, bebia em Montaigne, sem nunca ter citado a fonte. (“Quem revela a fonte é água mineral”). É muito provável que o personagem Caliban, de “A tempestade”, seja inspirado no relato que Montaigne faz dos antropófagos brasileiros, caliban é um anagrama de canibal. (Meu palpite é que a ilha descrita na última criação de Shakespeare é Fernando de Noronha, mas isso é outro assunto.)

Se não me falha a Wikipedia, Michel Eyquem de Montaigne (Saint-Michel-de-Montaigne, 28 de fevereiro de 1533 - Saint-Michel-de-Montaigne, 13 de setembro de 1592) foi um escritor e ensaista francês, considerado por muitos como o inventor do ensaio pessoal. Nas suas obras e, mais especificamente nos seus “Ensaios”, analisou as instituições, as opiniões e os costumes, debruçando-se sobre os dogmas da sua época e tomando a generalidade da humanidade como objeto de estudo.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Michel_de_Montaigne

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Volto aos Ensaios sempre que posso, é “gibi do bom”. (Definição de Tom Zé para leituras inebriantes). Vez por outra, cito Montaigne. Fiz isso uma vez, num encontro em São Paulo, para me exibir para os meus companheiros de mesa, Eduardo Coutinho e Ismail Xavier. Li uma passagem do ensaio “Do arrependimento”, o capítulo 2 do terceiro livro - um trecho analisado em Mimesis, de Erich Auerbach - e mais alguns pedaços de outros ensaios. Nosso debate foi transcrito no livro “O Cinema do real”, organizado por Dora Mourão e Amir Labaki (Editora CosacNaify). Também publiquei a minha fala no blog.

O resultado é que meu mix de Montaigne foi parar em vários blogs e até em alguns trabalhos acadêmicos. E sem o crédito do tradutor, que não é citado no livro de Auerbach. Para corrigir a omissão e tentar organizar a bagunça, publico aqui o mesmo trecho, no original em francês e nas diferentes traduções para o português. Escolha a sua preferida.

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Michel de Montaigne, Les Essais, Livro III, capítulo 2:

Du repentir

LES autres forment l’homme, je le recite: et en represente un particulier, bien mal formé: et lequel si j’avoy à façonner de nouveau, je ferois vrayement bien autre qu’il n’est : mes-huy c’est fait. Or les traits de ma peinture, ne se fourvoyent point, quoy qu’ils se changent et diversifient. Le monde n’est qu’une branloire perenne : Toutes choses y branlent sans cesse, la terre, les rochers du Caucase, les pyramides d’Ægypte : et du branle public, et du leur. La constance mesme n’est autre chose qu’un branle plus languissant. Je ne puis asseurer mon object : il va trouble et chancelant, d’une yvresse naturelle. Je le prens en ce poinct, comme il est, en l’instant que je m’amuse à luy.

Je ne peinds pas l’estre, je peinds le passage: non un passage d’aage en autre, ou comme dict le peuple, de sept en sept ans, mais de jour en jour, de minute en minute. Il faut accommoder mon histoire à l’heure. Je pourray tantost changer, non de fortune seulement, mais aussi d’intention: C’est un contrerolle de divers et muables accidens, et d’imaginations irresoluës, et quand il y eschet, contraires: soit que je sois autre moy-mesme, soit que je saisisse les subjects, par autres circonstances, et considerations. Tant y a que je me contredis bien à l’advanture, mais la verité, comme disoit Demades, je ne la contredy point. Si mon ame pouvoit prendre pied, je ne m’essaierois pas, je me resoudrois : elle est tousjours en apprentissage, et en espreuve.

Je propose une vie basse, et sans lustre: C’est tout un, On attache aussi bien toute la philosophie morale, à une vie populaire et privee, qu’à une vie de plus riche estoffe: Chaque homme porte la forme entiere, de l’humaine condition.

Fonte:
http://www.bribes.org/trismegiste/montable.htm

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Tradução (de autor não mencionado) deste trecho em “Mimesis”, de Erich Auerbach. (Editora Perspectiva, São Paulo, 1998.)

Do arrependimento.

“Os outros formam o homem, eu relato a seu respeito e represento um em particular, bastante mal formado, e se tivesse de formá-lo de novo, fá-lo-ia, em verdade, bem diferente do que é. Mas hoje já está feito. Ora, os traços de minha pintura não deixam de ser fiéis, embora mudem e se diversifiquem. O mundo não é senão uma perene vacilação. Todas as coisas vacilam nele sem cessar: a terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito, tanto pela vacilação geral quanto pela própria vacilação. A mesma constância não é outra coisa senão uma vacilação mais lenta. Não posso fixar o meu objeto; ele vai confuso e titubeante, com uma ebriedade natural. Pego-o em qualquer lugar, como está, no instante em que com ele me divirto; não descrevo o ser, descrevo a passagem; não a passagem de uma idade a outra, ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas dia a dia, minuto a minuto. Devo acomodar a minha história à hora, eu mesmo poderia mudar um outro tanto, não só de fortuna, mas também de intenção. É um relatório de acidentes diversos e mutáveis, de imagens indefinidas e, às vezes, contrárias, quer porque eu mesmo não seja sempre o mesmo, quer porque apreenda os objetos em outras circunstâncias ou sob outras considerações. É certo que me contradigo uma vez ou outra, mas na verdade, como dizia Demandes, nunca contradigo. Se a minha alma pudesse ganhar pé, eu não faria experiências comigo, resolver-me-ia; mas ela está sempre em aprendizagem e sendo posta à prova.

Descrevo uma vida baixa e sem brilho: dá na mesma; é possível achar toda a filosofia moral numa vida popular e privada tanto quanto numa vida feita de matéria mais rica: cada homem leva em si a forma inteira da condição humana.”

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Tradução de J. M. de Toledo Malta. Seleta dos Ensaios de Montaigne, Livraria José Olympio, Rio de Janeiro, 1961.

Do arrependimento.

Os outros o formam; eu descrevo o homem e apresento um particular bem mal formado, e que, se eu tivesse de afeiçoar de novo, certamente o faria bem outro do que é; mas doravante, está acabado. Ora, os traços do meu retrato não se extraviam, embora se mudem e diversifiquem. O mundo não é mais que um balouço perpétuo, onde todas as coisas balouçam sem cessar: a terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito, tanto em virtude do próprio como do universal balanço. A constância mesma outra coisa não é que um balouço mais esmorecido. Eu não posso fixar o meu objeto: o qual passa agitado e cambaleante, por uma embriaguez natural. Tomo-o neste ponto, tal como está, no instante em que me entretém. Não pinto o ser. Pinto a passagem: não uma passagem de uma idade para outra, ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas dia por dia, de minuto em minuto. Cumpre-me ajustar a minha história à hora: poderei mudar em breve, não somente de fortuna, mas também de intenção. É uma vigilância de diversos e mudáveis sucessos e pensamentos indecisos e, quando calha, contrários: ou porque eu mesmo seja outro, ou porque eu apreenda os objetos por outras circunstâncias e considerações. Seja como fôr, eu talvez me contradiga bastante, mas a verdade, como dizia Dêmades, eu jamais a contradigo. Se a minha alma pudesse tomar pé, eu não me ensaiaria, porém me decidiria: ela anda sempre no aprendizado e à prova.

Eu exponho uma vida inferior e sem brilho, pouco importa. Toda a filosofia moral tanto se refere a uma vida popular e privada como a uma vida de mais preciosa estofa: cada homem contém a forma inteira da humana condição.

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Tradução de Sérgio Milliet, Ensaios de Montaigne. Editora Universidade de Brasília, 1987

Do arrependimento.

“Outros autores têm como objetivo a educação do homem; eu o descrevo. E o que assim apresento é bem mal conformado. Se o tivesse de refazer, fa-lo-ia sem dúvida bem diferente. Acontece que já está feito. Os traços deste seu retrato são fiéis, embora variem e se diversifiquem. O mundo é movimento; tudo nele muda continuadamente; a terra, as montanhas do Cáucaso, as pirâmides do Egito, tudo participa do movimento geral e do seu próprio; e a imobilidade mesma não passa de um movimento menos acentuado. Não posso fixar o objeto que quero representar: move-se e titubeia como sob o efeito de uma embriaguez natural. Pinto-o como aparece em dado instante, apreendo-o em suas transformações sucessivas, não de sete em sete anos, como diz o povo que mudam as coisas, mas dia por dia, minuto por minuto. É pois no momento mesmo em que o contemplo que devo terminar a descrição; um instante mais tarde não somente poderia encontrar-me diante de uma fisionomia mudada, como também minhas próprias idéias possivelmente já não seriam as mesmas. Observo e anoto os diversos acidentes que ocorrem dentro de mim e as concepções mais ou menos fugidias que minha imaginação engendra, as quais são por vezes contraditórias ou porque tenha mudado eu, ou porque o objeto da observação apareça dentro de um quadro e de uma luz diferentes. Daí acontecer-me, não raro, cair em contradição, embora, como diz Dêmades, não deixa de ser autêntico. Se minha alma pudesse fixar-se, eu não seria hesitante; falaria claramente, como um homem seguro de si. Mas ela não pára e se agita sempre à procura do caminho certo.

Apresento uma vida das mais vulgares, que nada tem de especial. A vida íntima do homem do povo é de resto um assunto filosófico e moral tão interessante quanto a do indivíduo mais brilhante; deparamos em qualquer homem com o Homem.”

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Tradução de Rosemary Costhek Abílio. Editora Martins Fontes, São Paulo, 2001.

Do arrependimento.

“Os outros formam o homem; eu o descrevo, e reproduzo um homem particular muito mal formado e o qual, se eu tivesse de moldar novamente, em verdade faria muito diferente do que é. Mas agora está feito. Ora, os traços de minha pintura não se extraviam, embora mudem e diversifiquem-se. O mundo não é mais que um perene movimento. Nele todas as coisas se movem sem cessar; a terra, os rochedos do Cáucaso, as pirâmides do Egito, e tanto com o movimento geral como com o seu particular. A própria constância não é outra coisa senão um movimento lânguido. Não consigo fixar meu objeto. Ele vai confuso e cambaleante, com uma embriaguez natural. Tomo-o nesse ponto, como ele é no instante em que dele me ocupo. Não retrato o ser. Retrato a passagem; não a passagem de uma idade para outra ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas de dia para dia, de minuto para minuto. É preciso ajustar minha história ao momento. Daqui a pouco poderei mudar, não apenas de fortuna, mas também de intenção. Este é um registro de acontecimentos diversos e mutáveis e de pensamentos indecisos e, se calhar, opostos; ou porque eu seja um outro eu, ou porque capte os objetos por outras circunstâncias e considerações. Seja como for, talvez me contradiga; mas, como dizia Dêmades, não contradigo a verdade. Se minha alma pudesse firmar-se, eu não me ensaiaria: decidir-me-ia; ela está sempre em aprendizagem e prova.

Exponho uma vida vulgar e sem brilho; isso não importa. Ligamos toda a filosofia moral tão bem a uma vida comum e privada quanto a uma vida de mais rico estofo: cada homem porta em si a forma integral da condição humana.”