por Jorge Furtado
em 23 de abril de 2012
Na cena que abre “A tempestade”, de William Shakespeare, um nobre alerta o Contramestre, que tenta salvar o navio de uma poderosa tormenta, para que tenha muito cuidado, transportam o Rei de Nápoles e o Duque de Milão: “Lembrem-se de quem têm a bordo”. A resposta do Contramestre é uma pérola de sabedoria, um atestado de saúde mental: “Ninguém de quem eu goste mais do que de mim mesmo”.
A expressão “mais realista que o rei” tem um engano embutido. Ela define quem luta pelos interesses do patrão mais do pelos seus próprios interesses, o grau varia de “bom funcionário” a “capacho nojento”, dependendo do círculo da conversa. O caso é que a palavra “realista” é muito mais usada como relativa ao “real”, o oposto de “imaginário, fantasioso”, do que ao “real” relativo “ao rei”. Para nós, depois de mais de um século sem monarquia, a palavra real nos faz pensar antes em moedas do que em reis e rainhas. Qualquer pessoa com um mínimo de bom senso costuma ser mais realista que um rei. A nobreza, com seus frufrus e pompa sem conteúdo, vive num mundo de faz de conta, irreal, um mundo de formalidades fúteis, fardões e rapapés, de condomínios e negócios fechados.
Parece - é o que informa João Gomes da Silveira em seu “Dicionário de expressões populares da língua portuguesa” - que o apodo “mais realista que o rei” é de origem francesa, “être plus réaliste que le roi”. O rei em questão era Luís XVIII, que restaurou a monarquia da Casa dos Bourbons depois do império de Napoleão, e reinou de 1815 até sua morte, em 1824. Depois do exílio, Luis XVIII entrou em Paris em triunfo, antecedido por grande campanha por sua volta. O maior dos propagandistas do monarca, talvez o primeiro homem a ser definido como “mais realista que o rei” - mas certamente não primeiro puxa-saco - foi o diplomata Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord, dono de uma habilidade política que o fez integrar vários governos.
A elite (financeira, não intelectual ou moral) brasileira é, quase sempre, mais realista que o rei, mostra seguidamente sua vocação para capacho. A última demonstração de baba-ovismo apareceu no caso da nacionalização, pelo governo argentino, na empresa petrolífera YPF, entregue a um grupo espanhol na privataria que dominou a América Latina no final do século 20. Mal foi anunciada, os jornais e tevês brasileiros se apressaram em condenar Cristina Kirchner e seu governo, pouco ou nada sabendo do que acontecia de fato por lá. Nada disseram sobre a longa queda de braço do governo argentino com os proprietários espanhóis, sobre a diminuição de investimentos, a queda de produção de gás, o endividamento público na importação de petróleo.
Passados alguns dias descobrimos que a nacionalização da YPF não só é apoiada pela maioria dos argentinos e por todos os partidos, inclusive os de oposição, como também pelo FMI. Ou seja: a imprensa brasileira, sem um segundo de reflexão, alinha-se automaticamente com o capital, com os especuladores e com os europeus, contra os interesses dos trabalhadores e consumidores e contra os argentinos.
Mais realistas que o rei, os tais “formadores de opinião” que frequentam a imprensa brasileira tem vocação para… bom, os sinônimos no Houaiss são muitos, pode escolher: adulador, adulão, aduloso, babão, baba-ovo, bajoujo, banhista, caçambeiro, cafofa, canonizador, capacho, chaleira, chaleirista, cheira-cheira, chupa-caldo, corta-jaca, derrengado, engrossador, escova-botas, lambe-botas, lambe-cu, lambedor, lambe-esporas, lambeta, lambeteiro, lisonjeador, louvaminheiro, mesurado, mesureiro, pelego, puxa-saco, sabujo, servil, servilão, sorrabador, turibulário, turiferário, turificador, turificante, xeleléu, xereta, zumbaieiro.
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FMI: Reestatizar YPF é decisão soberana da Argentina
O chefe do Departamento Ocidental do Fundo Monetário Internacional (FMI), o chileno Nicolás Eyzaguirre considerou na sexta-feira (20) que a Argentina retomar o controle estatal da YPF “é uma decisão soberana” do país latino-americano e que deve ser tratado como “um assunto bilateral”.
Nas palavras de Eyzaguirre, a Argentina está em seu direito ao se expropriar de 51% das ações da YPF que pertenciam à espanhola Repsol. A decisão acabou causando fortes críticas e ameaças de sanções por parte da Espanha e da União Europeia.
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Pesquisa: 62% dos argentinos apoia expropriação de petroleira
Cerca de 62% dos argentinos apoia a decisão do governo de Cristina Kirchner de expropriar 51% das ações da petroleira YPF, que estava em mãos da espanhola Repsol, de acordo com uma pesquisa divulgada neste domingo. Entre os entrevistados, 26% disse estar “muito de acordo” e 36% disse estar “de acordo” com esta decisão, que abalou as relações diplomáticas com a Espanha, cujo governo anunciou medidas de represália.
Segundo o estudo da consultoria Poliarquia, publicada neste domingo pelo jornal La Nación, 23% dos consultados disse estar “em desacordo” com a medida e só 8% a rejeitou por completo. Consultados sobre o impacto que consideram que isso trará à economia, 49% considerou que será positivo, e 47% admitiu que afetará negativamente a imagem da Argentina no exterior.
A sondagem revela que a expropriação obteve 49% de apoio na capital, governada pelo opositor Mauricio Macri (direita), que rejeitou a expropriação e advertiu que os deputados de seu partido votarão contra a lei no Congresso Nacional. A medida recebeu 66% de apoio nas consultas realizadas no interior do país, onde quatro de cada dez pesquisados se mostraram “muito de acordo”. A pesquisa realizou 1.115 entrevistas por telefone com maiores de idade residentes em 40 cidades do país.
A Argentina anunciou na segunda-feira passada a expropriação de 51% das ações da YPF, alegando uma falta de investimentos necessários. O governo espanhol respondeu com a redução da compra de biodiesel argentino, produto que tem a Argentina como um dos principais provedores do mundo.
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A tempestade, de William Shakerspeare.
Ato I, Cena 1,
(A bordo de um navio no mar. Ouve-se ruído de tempestade, trovões e raios. Entram um Mestre e um Contramestre.
MESTRE - Contramestre!
CONTRAMESTRE - Olá, Mestre, tudo em ordem?
MESTRE - Tudo; diga aos marinheiros que, se não trabalharem rápido, encalhamos; mexam-se, mexam-se! (Sai.)
(Entram os marinheiros)
CONTRAMESTRE - Eia, meus corações! Muito ânimo, meus corações! Depressa, recolham a mezena! De ouvido no apito do Mestre! Sopra até perder o fôlego, se dá para isso!
(Entram Alonso, Sebastian, Antônio, Ferdinando, Gonzalo e outros.)
ALONSO - Cuidado, Contramestre! Onde está o Mestre? Controle seus homens.
CONTRAMESTRE - Por favor, fiquem lá embaixo.
ANTÔNIO - Onde está seu superior, Contramestre?
CONTRAMESTRE - Não o está ouvindo? Estão atrapalhando o serviço; fiquem nos camarotes; estão ajudando a tempestade.
GONZALO - Não, meu amigo, tenha paciência.
CONTRAMESTRE - Quando o mar tiver. Fora! O que é um rei para estas ondas? Pros camarotes! Silêncio! Não nos atrapalhem.
GONZALO - Muito bem; mas lembrem-se de quem têm a bordo.
CONTRAMESTRE - Ninguém de quem eu goste mais do que de mim mesmo.
Teatro Completo, Vol. II, editora Nova Aguilar, tradução de Barbara Heliodora.
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SCENE I.
On a ship at sea: a tempestuous noise of thunder and lightning heard.
Enter a MASTER and a BOATSWAIN.
MASTER Boatswain!
BOATSWAIN Here, master: what cheer?
MASTER Good, speak to the mariners: fall to’t, yarely, or we run ourselves aground: bestir, bestir.
Exit
Enter Mariners
BOATSWAIN Heigh, my hearts! Cheerly, cheerly, my hearts! yare, yare! Take in the topsail. Tend to the master’s whistle. Blow, till thou burst thy wind, if room enough!
Enter ALONSO, SEBASTIAN, ANTONIO, FERDINAND, GONZALO, and others
ALONSO Good boatswain, have care. Where’s the master?
Play the men.
BOATSWAIN I pray now, keep below.
ANTONIO Where is the master, boatswain?
BOATSWAIN Do you not hear him? You mar our labour: keep your cabins: you do assist the storm.
GONZALO Nay, good, be patient.
BOATSWAIN When the sea is. Hence! What cares these roarers for the name of king? To cabin: silence! trouble us not.
GONZALO Good, yet remember whom thou hast aboard.
BOATSWAIN None that I more love than myself.
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Atualizado em 24.04.12
Da Folha de S. Paulo
A ARGENTINA TEM RAZÃO
Luiz Carlos Bresser-Pereira
Não faz sentido deixar sob controle estrangeiro um setor estratégico para o desenvolvimento do país
A Argentina se colocou novamente sob a mira do Norte, do “bom senso” que emana de Washington e Nova York, e decidiu retomar o controle do Estado sobre a YPF, a grande empresa petroleira do país que estava sob o controle de uma empresa espanhola. O governo espanhol está indignado, a empresa protesta, ambos juram que tomarão medidas jurídicas para defender seus interesses. O “Wall Street Journal” afirma que “a decisão vai prejudicar ainda mais a reputação da Argentina junto aos investidores internacionais”. Mas, pergunto, o desenvolvimento da Argentina depende dos capitais internacionais, ou são os donos desses capitais que não se conformam quando um país defende seus interesses? E, no caso da indústria petroleira, é razoável que o Estado tenha o controle da principal empresa, ou deve deixar tudo sob o controle de multinacionais?
Em relação à segunda pergunta parece que hoje os países em desenvolvimento têm pouca dúvida.
Quase todos trataram de assumir esse controle; na América Latina, todos, exceto a Argentina. Não faz sentido deixar sob controle de empresa estrangeira um setor estratégico para o desenvolvimento do país como é o petróleo, especialmente quando essa empresa, em vez de reinvestir seus lucros e aumentar a produção, os remetia para a matriz espanhola.
Além disso, já foi o tempo no qual, quando um país decidia nacionalizar a indústria do petróleo, acontecia o que aconteceu no Irã em 1957. O Reino Unido e a França imediatamente derrubaram o governo democrático que então havia no país e puseram no governo um xá que se pôs imediatamente a serviço das potências imperiais.
Mas o que vai acontecer com a Argentina devido à diminuição dos investimentos das empresas multinacionais? Não é isso um “mal maior”? É isso o que nos dizem todos os dias essas empresas, seus governos, seus economistas e seus jornalistas. Mas um país como a Argentina, que tem doença holandesa moderada (como a brasileira) não precisa, por definição, de capitais estrangeiros, ou seja, não precisa nem deve ter deficit em conta corrente; se tiver deficit é sinal que não neutralizou adequadamente a sobreapreciação crônica da moeda nacional que tem como uma das causas a doença holandesa.
A melhor prova do que estou afirmando é a China, que cresce com enormes superavits em conta corrente. Mas a Argentina é também um bom exemplo. Desde que, em 2002, depreciou o câmbio e reestruturou a dívida externa, teve superavits em conta corrente. E, graças a esses superavits, ou seja, a esse câmbio competitivo, cresceu muito mais que o Brasil. Enquanto, entre 2003 e 2011 o PIB brasileiro cresceu 41%, o PIB argentino cresceu 96%.
Os grandes interessados nos investimentos diretos em países em desenvolvimento são as próprias empresas multinacionais. São elas que capturam os mercados internos desses países sem oferecer em contrapartida seus próprios mercados internos. Para nós, investimentos de empresas multinacionais só interessam quando trazem tecnologia, e a repartem conosco. Não precisamos de seus capitais que, em vez de aumentarem os investimentos totais, apreciam a moeda local e aumentam o consumo. Interessariam se estivessem destinados à exportação, mas, como isso é raro, eles geralmente constituem apenas uma senhoriagem permanente sobre o mercado interno nacional.
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SOMOS TODOS ARGENTINOS
Por Mauro Santayana
O Brasil e a Argentina, sendo os dois maiores países da América do Sul, têm sido alvos preferenciais do domínio euro-americano em nosso continente. A Argentina, sob Cristina Kirchner, depois de anos desastrados de ditadura militar, e do governo caricato e neoliberal de Menen, se confronta com Madri, ao retomar o controle de suas jazidas de petróleo que estava com a Repsol. Quando um governo entrega, de forma aviltante, os bens nacionais ao estrangeiro, como também ocorreu no Brasil, procede como quem oferece seu corpo no mercado da prostituição. Assim, as medidas de Cristina buscam reparar a abjeção de Menem.
Será um equívoco discutir o conflito de Buenos Aires com Madri dentro dos estreitos limites das relações econômicas. A economia de qualquer país é um meio para assegurar sua soberania e dignidade - não um fim em si mesmo.
As elites espanholas, depois da morte de Franco, foram seduzidas pela idéia de que poderiam recuperar sua presença na América Latina, perdida na guerra contra os Estados Unidos e durante a ditadura de quase 40 anos. Já durante o governo de Adolfo Suárez, imaginaram que poderiam, pouco a pouco, readquirir a confiança dos latino-americanos, ofendidos pela intervenção descarada dos Estados Unidos no continente. De certa forma, procediam com inteligência estratégica: a nossa América necessitava de aliados, mesmo frágeis, como era a Península Ibérica, na reconstrução de sua soberania, mutilada pelos governos militares alinhados a Washington.
Mas faltou aos governantes e homens de negócios espanhóis a habilidade diplomática, que se dissimula na modéstia, e lhes sobrou arrogância. Essa arrogância cresceu quando a Espanha foi admitida na União Européia, e passou a receber fartos recursos dos países ricos do Norte, a fim de acertar o passo continental. A sua estratégia foi a de, com parte dos recursos disponíveis, “comprar” empresas e constituir outras em nossos países. Isso os levou a imaginar que poderiam ditar a nossa política externa, como serviçais que foram, e continuam a ser, dos Estados Unidos. A idéia era a de que, em espanhol, os ditados de Washington seriam mais bem ouvidos.
O paroxismo dessa paranóia ocorreu quando José Maria Aznar telefonou ao presidente Duhalde, da Argentina, determinando-lhe que aceitasse as imposições do FMI, sob a ameaça de represálias. E a insolência maior ocorreu, e sob o governo socialista de Zapatero, quando esse heróico matador de paquidermes indefesos, Juan Carlos, mandou que o presidente Chávez (eleito livremente pelo seu povo, sob a fiscalização de observadores internacionais, entre eles o ex-presidente Carter) se calasse, no encontro iberoamericano de Santiago. Um rei matador de elefantes indefesos e sogro de um acusado de peculato - o bem apessoado serviçal da Telefónica de Espanha, Iñaki Urdangarin, pago com lucros obtidos pela empresa na América Latina, principalmente no Brasil.
Os espanhóis parecem não se dar conta de que as suas antigas colônias se tornaram independentes, umas mais cedo - como é o caso da Argentina - e outras mais tarde, embora muitas passassem ao domínio ianque. Imaginaram que podiam fazer o que faziam antes disso no continente - e incluíram o Brasil na geografia de sua presunção.
O Brasil pode e deve ser solidário com a Argentina, no caso da recuperação, para seu povo, das jazidas petrolíferas da YPF. E manter a nossa posição histórica de reconhecimento da soberania de Buenos Aires sobre o arquipélago das Malvinas.
Que querem os espanhóis em sua gritaria por solidariedade contra a Argentina, pelo mundo afora? Eles saquearam tudo o que puderam, durante o período colonial, em ouro e prata. Usaram esses recursos imensos - assim como os portugueses fizeram com o nosso ouro - a fim de construir castelos e armar exércitos que só se revelaram eficazes na repressão contra o seu próprio povo - como ocorreu na guerra civil.
Durante o seu período de arrogância subsidiada, trataram com desdém os mal chamados iberoamericanos, humilhando e ofendendo brasileiros e latino-americanos, aviltando-os ao máximo. Um só ser humano, em sua dignidade, vale mais do que todos os poços de petróleo do mundo. Antes que Cristina Kirchner determinasse a recompra das ações da YPF em poder da Repsol, patrimônio muito maior dos argentinos e de todos os latinoamericanos, sua dignidade, havia sido aviltada, de forma abjeta e continuada, pelas autoridades espanholas no aeroporto de Barajas e em seu território.
Que se queixem agora aos patrões, como seu chanceler, Garcia-Margallo fez, ao chorar nos ombros da senhora Clinton, e busquem a solidariedade de uma Europa em frangalhos. Ou que rearmem a sua Invencível Armada em Cádiz, e desembarquem no Rio da Prata. Isso, se antes, os milhões de jovens desempregados - a melhor parcela de um povo maravilhoso, como é o da Espanha - não resolvam destituir suas elites políticas, corruptas, incompetentes e opressoras, e seu rei tão ocioso quanto descartável.
E, ao final, vale lembrar a viagem histórica que Eva Perón fez à Europa, no auge de sua popularidade. Em Madri, diante da miséria em que se encontrava o povo, ofereceu a Franco, em nome do povo argentino, alguns navios cheios de trigo. O general respondeu que não era necessário, que os celeiros espanhóis estavam cheios de farinha. E Evita replicou, de pronto: ¿entonces, por qué no hacen pan?