por Jorge Furtado
em 09 de maio de 2012
Depois de uma longa campanha da mídia contra as cotas nas universidades, o Supremo Tribunal Federal votou a favor das cotas, e o placar foi de 10 a zero.
Se você, como eu, é um cidadão brasileiro branco da classe A, pergunte-se quantos colegas negros teve na escola ou na universidade. Com a mudança de mentalidade imposta por lei a uma sociedade racista como a nossa - o último país do ocidente a extinguir a escravidão e ainda um dos mais desiguais do planeta - talvez seus filhos e netos tenham mais chance de escapar do pior dos defeitos de caráter, o preconceito.
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Sobre o assunto, a relação da mídia brasileira com a questão das cotas, um excelente artigo de Ana Maria Gonçalves, “A mídia, as cotas e o sempre bom e necessário exercício da dúvida”.
Um trecho:
Há anos venho prestando atenção nos absurdos que os formadores de opinião são capazes de dizer contra as cotas. Apenas para que vocês tenham uma ideia, vou pegar o texto publicado por Yvonne Maggie em sua coluna semanal no portal de notícias da Globo, G1, no dia 23/04/2012, “A constitucionalidade das cotas raciais no Brasil”. Um dia antes da votação no STF, Yvonne Maggie escreveu:
“Em Thirteen ways of looking at a black man, de Henry Louis Gates Junior, professor de Harvard, há uma história reveladora do que se passou depois da lei dos direitos. Neste livro, Harry Belafonte conta que alguns anos depois de 1964 fora convidado para fazer um filme. O produtor, muito animado, lhe dissera: “Harry, será maravilhoso, vamos fazer um filme dirigido e estrelado por negros, produzido por negros, com música feita por negros e vai ser belíssimo”. Ao que o ator, nervoso, respondeu: “Não quero fazer parte disso, passei tantos anos lutando para sair do gueto, não serei eu a me enfiar de novo nele”. Gates conta que durante a entrevista, após esta declaração de Harry, seguiu-se um silêncio constrangedor, só quebrado com uma sonora gargalhada do entrevistado e a seguinte frase: “Eu não aceitei a armadilha, mas é claro que Sidney Poitier aceitou e ficou rico estrelando todos aqueles filmes”.
Por acaso temos o livro em casa e eu resolvi conferir. Já escaldada nesse tipo de manipulação, poucas vezes estive errada em duvidar, principalmente quando algum negro (no caso, dois) é pego para servir de boneco de marionete. Pois bem, a estória contada por Yvonne Maggie não existe. Há dois fragmentos que ela parece ter juntado, enfeitado com silêncio constrangedor, gargalhada sonora, uma data hipotética, umas frases de efeito inventadas e legitimadas por aspas, além de distorcidas para ilustrar o próprio ponto de vista. Essa estratégia de eleger um “negro boneco de marionete”, selecionar parte ou sentido de seu discurso ou ato, e reinterpretá-lo de modo a que ele sirva de exemplo a ser seguido pelos “menos esclarecidos”, como se ele já tivesse passado por isso e soubesse mais e melhor, é bastante comum, como já apontei aqui. Antes de mostrar o que realmente escreveu o professor Henry Louis Gates Jr. que, junto com Harry Belafonte, é figura importante na luta dos direitos dos negros norte-americanos, acho importante contextualizar algumas coisas.
Em 1953, Belafonte se mudou para a vizinhança branca de Elmhurts, no Queens. Magurite, que era sua esposa na época, nos conta: “Logo que nos mudamos, de repente vimos uma quantidade de placas de “Vende-se” aparecendo”. Um dia depois, Adrienne, quatro anos, negra, filha de Magurite com Belafonte, dizia para a mãe: “Mãe, temos que nos mudar! Há negros se mudando para a vizinhança!”. (págs. 161 e 162).
Na época Belafonte já era bastante conhecido como ator e cantor, e muita gente analisa que isso se dava, não só mas também, porque ele não era preto-preto. Apesar da pele mais clara, a ele também não era permitido usar as dependências dos hotéis nos quais se apresentava, tendo sempre que dormir em pensões para negros nos arredores das cidades. Em 1957, Belafonte atuou em Island in the sun, formando par romântico com uma atriz branca, Joan Fontaine. O filme, e principalmente o beijo entre os dois, casou escândalo nos EUA, fazendo com que fosse introduzida legislação no estado da Carolina do Sul, multando as salas de cinema que exibissem o filme. Nessa mesma época foi escândalo também, entre as comunidades negras e brancas, o fato de Belafonte, então, ter se separado de sua primeira esposa Margurite, negra, e ter se casado com uma mulher branca, Julie Robinson. É aqui que acontece a primeira história que inspirou a adaptação de Yvonne Maggie, contada nas páginas 169 e 170:
“Belafonte se lembra que mais ou menos naquela época Otto Preminger queria escalá-lo para uma versão filmada de Porgy and Bess. Ele achou o script racialmente ofensivo - um romance entre um drogado e uma puta, não era? “Um monte de gente da comunidade negra disse não. Quem quebrou a corrente foi Sidney, que aceitou fazê-lo.” Na sequência, o filme não fez muito sucesso quando saiu, em 1960, e foi severamente criticado pela imprensa negra. Mas um padrão estava estabelecido. O desencantamento de Belafonte com Hollywood cresceu. Na década seguinte, seu amigo Poitier fez dezessete grandes filmes; Belafonte não fez nem um.
Pra começar, os roteiros que lhe era oferecidos o horrorizavam. Ele menciona uma série de filmes que recusou. “Um deles era o filme chamado To Sir with Love.”
“Você o recusou?” Eu estou chocado.
“Ah, merda, sim. E também Lilies of the Field”.
Esse, claro, foi o filme de 1963 que firmou Poitier como uma presença significante no cinema pós-guerra: nobre, abnegado, bondoso. Quando o vi, aos treze anos, caí no choro. Era o perfeito veículo dos movimentos dos direitos civis no momento. Sua mensagem para a América branca era praticamente telegrafada: Nós somos um povo amigável e generoso, nós somos bons cidadãos.
Belafonte tinha outra opinião sobre isso. “Quando li Lilies of the Field, fiquei furioso. Você tem essas freiras fugindo do comunismo, e do nada há esse negro que se coloca por inteiro ao serviço delas, sem dizer nada, e sem fazer nada exceto ser comandado por essas freiras nazistas? Ele não beijou ninguém, ele não tocou ninguém, ele não tinha cultura, ele não tinha história, ele não tinha família, ele não tinha nada. Eu disse, “Não, eu não quero encenar filmes assim”. O que aconteceu foi que Sidney Poitier aceitou - e ganhou o Oscar”.
Sobre Poitier, que sempre foi e continua sendo seu amigo, Belafonte diz: “Sidney foi sempre mais maleável, mais acomodado. Ele escolheu cada um daqueles filmes para continuar exercitando sua beleza e se assegurar de que, nunca, mas nunca mesmo, perturbaria a psiquê branca com algo que fizesse. Nem em público, nem em particular”.
A segunda história apropriada por Yvonne Maggie está nas páginas 171 e 172:
“Em 1960, por exemplo, ele recebeu um Emmy por um especial que ele fez na televisão para a Revlon Hour, chamado “Tonight with Belafonte” [1959]. Como o show foi um sucesso de audiência, Revlon decidiu que poderia ser um bom caminho. De acordo com Belafonte, um acordo foi assinado no qual ele receberia um milhão de dólares para produzir e apresentar mais cinco shows. O segundo show, estrelado por astros brancos e negros do jazz, pop e folk, fez um sucesso estrondoso. Então, ele foi trazido de volta à realidade.
“Fui convidado para uma reunião com Charlie Revson”, ele me contou. “Eu deveria ir sozinho? Eu mal posso esperar - estou pensando que ele quer me dar metade de sua empresa, ou algo assim. Então, estamos almoçando em sua sala de jantar particular, e ele está dizendo, “Como um judeu em Jersey City, eu entendo de opressão” - da, da, da, da - “mas temos que conversar sobre o show. Ótimas avaliações. Ótimas críticas. Muito bem. Mas estamos recebendo alguns retornos que dizem que você deveria fazê-lo só com negros. Se você pudesse só descartar as pessoas brancas…” Eu não podia acreditar. E eu disse, “Sr. Revson, deixe-me te falar uma coisa. Se você me pedisse para colocar uma saia florida e cantar mais calipso, e dançar mais, porque é isso que as pessoas brancas gostariam, eu poderia pensar. Mas o que você me pediu para fazer - não há como eu concordar. Eu não posso me ressegregar.” Ele me disse, “O. K.”. Às quatro horas daquela mesma tarde, eu recebi um cheque de oitocentos mil dólares. Charlie Revson disse, “Adeus. Você está fora do ar.”
Se Yvonne Maggie leu o livro e se lembrava vagamente da história, o mínimo que se esperava de alguém que quer se levado à sério, é voltar ao livro e ver realmente como aconteceu. Se o fez e, mesmo assim, inventou isso tudo, é mais grave ainda. Yvonne Maggie é professora titular do Departamento de Antropologia Cultural do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, de acordo com o Perfil de seu blog. Não deveria se sujeitar a esse tipo de situação. Ela também datou a fábula inventada de “alguns anos depois de 1964″, (prestem atenção que as duas histórias acima acontecem por volta de 1960, ou antes) para nos “ensinar” que os negros norte-americanos inteligentes, depois dos Direitos Civis, não estão mais nem aí para essas lutas de negros. Não é verdade, e principalmente não é verdade em relação a Harry Belafonte (um dos mais destacados na campanha dos Direitos Civis, amigo pessoal de Luther King, Mandela, idealizador do “We are the World” e ainda na ativa, aos 84 anos de idade) e Henry Louis Gates Jr., ativista pelas ações afirmativas nas universidades estadunidenses.
Se Yvonne Maggie tivesse se dado ao trabalho de descer do alto de sua cátedra, poderia ter facilmente se informado da opinião do professor Gates, antes de usá-lo. Nesse vídeo, por exemplo, onde ele diz que a única razão de ter tanta gente (refere-se aos negros, em uma igreja negra) conseguindo se virar bem, é por causa do movimento dos Direitos Civis “E” das ações afirmativas. E continua: “Sem ações afirmativas nós nunca teríamos sido capazes de integrar as historicamente racistas e brancas instituições da sociedade americana… A primeira pergunta fundamental à qual temos que nos dedicar é como proteger, preservar e expandir as ações afirmativas. (…) Eu consegui ir para Yale University porque eles estavam tentando se diversificar. Eles estavam querendo que as classes se parecessem mais com a América. (fala de como era na faculdade e de sua vida profissional depois de se formar) Cada uma dessas coisas dessas coisas foi propiciada, foi tornada possível, pela existência de ações afirmativas. Isso não significa que eu não era qualificado, isso quis dizer que, por causa do racismo, a mim nunca teria sido permitido competir num terreno mais ou menos nivelado com garotos e garotas brancos. E para mim, para alguém que se beneficiou tanto das oportunidades das ações afirmativas, plantar-me no portão e tentar manter outros negros do lado de fora seria ser tão hipócrita quanto Clarence Thomas”. Talvez Harvard, que Yvonne Maggie faz questão de citar para conferir mais autoridade ao boneco de marionete que inventou, não teria Henry Louis Gates se ele não tivesse sido beneficiado por algo que ela o coloca para combater, fazendo-o passar pelo hipócrita que ele não é e não quer ser. É ofensivo o que Yvonne Maggie fez ao trabalho e à vida dos dois, principalmente tendo o professor Gates, relativamente rico e conhecido, também presidente do Instituto W.E.B. Du Bois, passado recentemente por essa traumática e vexatória situação de racismo. É intelectualmente desonesto e deveria ser vergonhoso.
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Texto integral de Ana Maria Gonçalves, com links para os vídeos e artigos citados, em:
http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/05/05/a-midia-as-cotas-e-o-sempre-bom-e-necessario-exercicio-da-duvida-por-ana-maria-goncalves
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Texto que publiquei aqui em 10 de março de 2010, sobre as cotas, um trecho:
“O assunto das cotas é polêmico, mas o fato do professor Ibsen Noronha e do senador Demóstenes Torres serem contra foram, para mim um argumento definitivo: sou a favor.”
Texto integral em:
https://www.casacinepoa.com.br/blog/2010-03-10-cotas/