por Giba Assis Brasil
em 02 de setembro de 2012
Sexta-feira, na reinauguração do Arteplex / Espaço Itaú de Cinema, eu pude assistir pela quarta ou quinta vez “Quanto mais quente melhor”, agora na tela grande. O som da cópia estava bastante deteriorado, principalmente no primeiro rolo, mas o filme segue sendo muito divertido, inteligente, tocante, surpreendente, um dos grandes do século passado, o que é quase tudo na história do cinema.
A comédia, dirigida por Billy Wilder e escrita em parceria com I.A.L. Diamond, é de 1959 mas se passa 30 anos antes. Em Chicago, durante a Lei Seca e alguns meses antes da quebra da bolsa, dois músicos desempregados, Joe (Tony Curtis) e Jerry (Jack Lemmon), perseguidos por mafiosos por terem testemunhado um assassinato, resolvem se disfarçar de mulher e fugir pra Florida com uma banda feminina, “Sweet Sue e suas Sincopadas”, onde vão encontrar, cantando e tocando ukulele, a ainda mais doce Sugar (Marilyn Monroe).
Mas Sweet Sue acha que tem alguma coisa errada naquelas duas figuras estranhas, e pergunta onde elas tocaram antes. “Aqui, ali e por aí”, responde Joe, que agora é Josephine, em voz de falsete. Mas Jerry, que diz se chamar Daphne, tenta ser mais convincente: “Nós passamos três anos no Conservatório Musical de Sheboygan.” O nome já é engraçado, mas na hora me pareceu que aí tinha uma piada a mais, que eu não conseguia alcançar. Anotei o nome pra pesquisar.
Até porque a piada é levada adiante. No primeiro ensaio, Sue se refere às duas como “as Sheboygans”. Mais tarde, na praia, quando Sugar está tentando conquistar o milionário Shell Junior (na verdade o próprio Joe/ Josephine disfarçado) e ele diz que não gosta de jazz e prefere música clássica, ela se apropria da apresentação da amiga: “Na verdade, eu passei três anos no Conservatório Musical de Sheboygan.” E ele ainda tripudia: “Ótima escola!”
Pois então. Sheboygan é uma pequena cidade de 50 mil habitantes no Wisconsin, cujo nome indígena provavelmente significa “passagem entre lagos”, que foi povoada no século 19 por imigrantes alemães, se tornou conhecida pelo “Festival da Salsicha” e certamente nunca teve um conservatório.
O nome da cidade também foi popularizado pela obra de Jack Ritchie (1922-1983), autor de mais de 500 histórias curtas de detetives, publicadas no “Mistério Magazine” de Ellery Queen e outras revistas do gênero. Segundo o crítico Marc Zimmermann, nos contos de Ritchie “havia invariavelmente um lugar chamado Sheboygan”, e isto se deveria a uma velha história contada por seus pais, que também viviam no estado de Wisconsin.
Mas é pouco provável que essa história ou esse cacoete tenham chegado até Billy Wilder, já que os contos de Ritchie e seu detetive Henry Turnbuckle não foram divulgados antes do final dos anos 1950. Para Wilder e Diamond, judeus emigrados da Áustria e da Bessarábia, a piada deve ter sido apenas essa (e já tá bom demais): um lugar pequeno, com nome estranho, improvável para uma formação musical erudita e, se possível, com um toque germânico: “Nós somos graduadas em contrabaixo e saxofone na Orquestra Sinfônica de Morro Reuter”.
Mas, para os escritores de sitcom americanos, Sheboygan se tornou uma gíria que significa piada excessiva, complicada demais, que pouca gente vai entender. Provavelmente porque, desde 1959, muito aspirante a humorista andou pesquisando a origem da tal piada com mais profundidade do que ela própria se permitia.
Este novo significado de Sheboygan eu descobri no blog de Ken Levine, roteirista que já trabalhou para várias séries, inclusive “Mash” e “Os Simpsons”. Duas semanas atrás, Levine publicou um pequeno glossário com 15 termos que, segundo ele, devem ser conhecidos e dominados por quem frequenta ou pretende frequentar salas de redação de comédias para tv. Ele prometeu acrescentar outros termos, o que até agora não fez, mas disse que “este já é um bom começo”.
E, já que a Lei 12.485 deve, entre outras coisas, fazer nascer no Brasil uma nova geração de autores de sitcom, vale a pena traduzir o glossário proposto por Levine. “Vale a pena” é modo de dizer, porque traduzir as definições não chega a ser difícil, mas tentar encontrar equivalentes em português pras gírias em si é um risco que eu não deveria correr, mas o que é a vida sem um pouco de perigo?
BATIDA (“beat”): cada novo evento dentro de uma cena.
BOTÃO (“button”): a piada final de uma cena.
CAPITÃO ÓBVIO (“Captain Obvious”): diz-se de quem aponta, com pompa e circunstância, um problema que até a tia do cafezinho já tinha percebido.
CASTANHOLA (“clam”): piada já muito usada.
DESAFIO DO REVISOR (“proofer’s challenge”): alguma questão técnica do roteiro que ninguém acha que vale a pena resolver por enquanto: que comida deve estar na mesa? quem foi o campeão naquele ano? Fica como tarefa pro último revisor.
ENCANAMENTO (“pipe”): exposição, ou seja, texto não humorístico nem dramático que serve para explicar como os personagens foram parar na situação atual. Segundo Levine, na série “Almost perfect” havia um personagem cuja única função era entrar na sala e entregar encanamento, por isso o chamaram de Encanador (“Piper”).
HEY MAY: um final de bloco tão bom que faz o marido chamar a esposa na cozinha: “Hey May, você precisa ver isso!” Termo supostamente criado por Carl Reiner ao escrever o “Dick van Dyke Show”. (E eu acrescento: do tempo em que o marido via tv e a mulher ficava na cozinha.)
JOGAR UM OSSINHO (“throwing a bone”): escrever uma piada específica pra um ator, porque ele não tem muito o que fazer naquela cena. Segundo Levine, acontece muito com os atores que a emissora recomenda, mas os escritores não queriam.
NA CORDA BAMBA (“swinging in on a rope”): situação em que um personagem secundário entra em cena, solta uma piada e cai fora.
NÚMERO DA CASA (“house number”): é quando um roteirista apresenta pros outros uma ideia ou piada que ainda não é bem o que ele queria, mas que pode servir como prefácio para a verdadeira ideia a ser apresentada em seguida. Supostamente do tempo de Norman Lear, escritor de tv hoje com 90 anos, muito ativo nas décadas de 1960 e 70. Segundo Levine, anunciar “número da casa” antes de apresentar uma piada ainda não muito elaborada é uma boa maneira de evitar passar por idiota.
POLÍCIA GRAMATICAL (“grammar police”): roteirista cuja contribuição limita-se a corrigir a gramática dos parceiros. Sou eu, né? Desculpem.
PROTETORAS (“savers”): piadas “confirmadas” que o roteirista guarda na manga para soltar logo depois de uma que não produziu o efeito desejado. Segundo Levine, Johnny Carson não teria sobrevivido sem elas.
RETORNO (“callback”): piada sobre algum elemento que já foi mencionado na cena.
SHEBOYGAN: piada excessivamente elaborada, de difícil entendimento.
SOPRO (“blow”): o mesmo que botão, mas parece mais com a linguagem da rua.
TRAMA B (“B story”): subtrama ou subplot. Segundo Levine, extremamente útil em séries de grupos, para que os personagens não envolvidos na trama principal tenham o que fazer e não fiquem enchendo o saco dos roteiristas.
E agora, com este vocabulário, podemos conversar como verdadeiros autores de sitcom. Diz ele.
TEM MAIS
Blog do roteirista Ken Levine.
Artigo de Marc Zimmermann sobre a presença de Sheboygan na obra de Jack Ritchie.
Roteiro completo de “Quanto mais quente melhor” (“Some like it hot”, 1959).
COMENTÁRIOS
Enviado por Liziane Kugland em 02 de setembro de 2012.
Puxa! Sempre pensei que fosse por causa de sheboy (= shemale) + (forçando um pouco) gang.
Enviado por Giba Assis Brasil em 02 de setembro de 2012.
Tem razão, Lizi. É claro que aquele velho safado não ia perder esse trocadilho.
Enviado por Juliano Dupont em 25 de setembro de 2012.
Giba, que bom que voltaste a acreditar nas tuas incertezas. Melhor tuas reflexões incertas do que a certeza narcísica-oligofrênica que estagnou teu blogue por mais de um ano. Aquele abraço