por Giba Assis Brasil
em 22 de maio de 2013
Sexta-feira passada, 17 de maio, morreu na prisão, em Buenos Aires, o ex-general e ex-ditador argentino Jorge Rafael Videla Redondo, aos 87 anos, em consequência de uma parada cardíaca.
Videla foi, de 1976 a 1981, presidente da junta militar que governou a Argentina até 1983. Em 1985, durante o governo Alfonsín, foi julgado e condenado à prisão perpétua por “numerosos homicídios qualificados”. Esteve 5 anos na prisão, mas recebeu indulto do então presidente Menem em 1990. Voltou a ser preso em 1998, quando a Justiça argentina considerou que o sistemático sequestro de bebês de presos políticos constituía “crime contra a humanidade”, portanto imprescritível. Mas, depois de 38 dias na cadeia, recebeu direito à prisão domiciliar, que só foi revogado por nova decisão judicial em outubro de 2008, já no governo de Cristina Kirchner, quando Videla voltou à prisão militar de Campo de Mayo.
O “Campo Especial de Operaciones Militares Especiales 25 de Mayo”, situado 30 quilômetros a noroeste de Buenos Aires, tem este nome em homenagem à “Revolución de Mayo”, que em 1811 iniciou o processo de independência da Argentina, depondo o Vice-rei por España Baltasar Cisneros e empossando o primeiro presidente Cornelio Saavedra. Pela mesma razão, a praça central de Buenos Aires, que já foi chamada Plaza Mayor no século XVI, Plaza de Armas no século XVII e Plaza de la Victória no início do século XIX, também passou a chamar-se Plaza de Mayo.
Foi no Campo de Mayo que a ditadura militar de Videla instalou seu principal Centro Clandestino de Detenção, conhecido na época como “El campito Los Tordos”. Segundo levantamento da Secretaria de Direitos Humanos da Argentina, por lá passaram cerca de 5 mil presos políticos. Conhecem-se até agora menos de 50 sobreviventes [1].
A Plaza de Mayo, ao contrário, foi onde começou a resistência à ditadura. No dia 30 de abril de 1977, 14 mães de desaparecidos políticos se reuniram em frente à Casa Rosada, sede do governo, para pedir informações sobre o paradeiro de seus filhos, dando início à organização das “Madres de la Plaza de Mayo”, que com seus lenços brancos na cabeça e suas marchas no mesmo local todas as quintas-feiras terminaram chamando atenção da imprensa internacional para as violações de direitos humanos na Argentina.
E foi na cela 5 do pavilhão C do Campo de Mayo que, a partir de outubro de 2011, o então prisioneiro e ex-ditador Videla gravou mais de vinte horas de entrevista ao jornalista Ceferino Reato, de La Nación [2]. A transcrição das gravações se transformou na base do livro “Disposición final”, lançado dia 14 de abril do ano passado [3]. Ali, Videla admite publicamente ter sido responsável direto pela morte de “7 a 8 mil pessoas” - embora os organismos de direitos humanos estimem que o número de mortos pela repressão argentina tenha passado de 30 mil. “Tengo sí un peso en el alma”, declara o velho ex-militar católico, mas tratando de deixar claro que “no estoy arrepentido de nada y duermo muy tranquilo todas las noches”.
Dois meses depois da publicação, Videla foi transferido para uma prisão civil [4], o Centro Penitenciário Marcos Paz, na região oeste da Grande Buenos Aires, e cujo nome homenageia um vice-presidente argentino, que morreu de cólera, em seu gabinete, durante a Guerra do Paraguai.
Já Videla, informa seu último boletim médico, morreu na privada, ou “sentado en el baño”, e no dia anterior tinha sido medicado por “presentar un cuadro de diarrea aguda” [5], o que talvez seja uma ironia, mas eu não tenho certeza. A autópsia, revelada no dia seguinte, indicou que a causa da morte foi uma hemorragia interna, provocada por uma queda durante o banho, cinco dias antes [6]. E isto levou alguns de seus correligionários (sim, eles ainda existem!) a levantarem suspeitas de que Videla teria sido assassinado [7], o que é sem dúvida uma ironia.
Esta semana, começou a circular na internet um texto curto que seria uma “carta à Família Videla”, cuja autoria provocou alguma disputa [8]. O e-mail que eu recebi do Sergio Muniz, e a maior parte das cópias em blogs e jornais, atribui-o a “Jorge Kostinger, periodista de Mar del Plata, que lo publicó en El Atlántico” [9], mas outras fontes davam como autores Vanessa Giménez [10] ou Juan José Hernández [11]. O problema é que nem o texto nem o nome de Kostinger aparecem na pesquisa do jornal El Atlántico de Mar del Plata [12]. E o próprio Jorge Köstinger (com trema no o, nome alemão) não publica nada em seu blog pessoal desde fevereiro [13]. Mas ontem apareceu a confirmação, no Twiter @jorgekostinger:
“Tengo fiebre de vanidad. Jamás pensé que mi carta a la familia de Videla, que se me ocurrió en el bondi, diera tantas vueltas. Gracias.”
Jorge Köstinger apresentou durante anos o programa “El puente” na rádio FM Residencias de Mar del Plata [14], ao lado de Vanesa Feuer, outro nome alemão. Atualmente dirige o Instituto Eter Mar del Plata, onde dá cursos de locução e redação para rádio [15]. Em seu perfil no Twitter, define-se ainda como “artista plástico ocasional, pai, argentino, latinoamericano” [16]. Sua “Carta à Família Videla” é de um poder de síntese impressionante. Nada a acrescentar.
Ahí está el cuerpo. Sin habeas corpus, ahí tienen el cuerpo. Unos papeles y es suyo, llévense el envase de su pariente. Cuentan ustedes con un cuerpo. Que les conste que lo reciben sin quemaduras ni moretones. Podríamos haberlo golpeado al menos, que ya hubiera estado pago. Pero nosotros preferimos no hacerlo, eso que sí hizo este cuerpo que ustedes van a enterrar. No lo tiramos desde un avión, no lo animamos a cantar con descargas de picana. Que cante, por ejemplo, adónde están nuestros cuerpos, los de nuestros compañeros. No fue violado. No tuvo un hijo acostado en el pecho mientras le daban máquina. No lo fusilamos para decir que murió en un enfrentamiento. No lo mezclamos con cemento. No lo enterramos en cualquier parte como NN [17]. No les robamos a sus nietos. Acá tienen el cuerpo.
Jorge Köstinger
NOTAS
[1] Matéria do jornal Página 12 sobre o Campo de Mayo, 23/03/2008
[2] “Videla: la confesión”, La Nación, 15/04/2012
[3] O livro “Disposición final” na Livraria Cultura
[4] Matéria do jornal Perfil sobre a transferência do prisioneiro Videla, 23/06/2012
[5] Informe médico sobre a morte de Videla no jornal Crónica, 19/05/2013
[6] Matéria do jornal “La Nación” mencionando a autópsia preliminar
[7] Blog “Bajando Líneas” afirma sobre Videla: “Lo mataron”
[8] Dúvidas sobre a autoria do texto no sítio Diagonales
[9] O texto no blog “Tirando al medio”
[10] O texto atribuído a Vanesa Giménez
[11] O texto atribuído a Juan José Hernández
[12] Jornal El Atlántico de Mar del Plata
[13] Blog pessoal de Jorge Köstinger
[14] Matéria no Clarín mencionando o programa El Puente, 29/01/1997
[15] Sítio do Instituto Eter Mar del Plata
[16] Perfil de Köstinger no Twitter
[17] NN: Nomen nescio, “nome desconhecido” em latim.
COMENTÁRIOS
Enviado por Juliano Dupont em 19 de junho de 2013.
Diante da morte deveríamos dar o nosso respeito, está certo. Mas depende do morto. No caso do apresuntado em questão, podemos dar uma gaitada no Vitelo, ou melhor, Videla. Acontece que o caso de ter morrido na privada lembra uma peça do esquecido Alberto Moravia. A peça se passa numa republiqueta caribenha e é a história de um General que sofre de uma prisão de ventre aguda e passa horas trancado no banheiro. Em um desses dias de esforços inúteis sobre a patente o General fica trancado no banheiro. E justamente nesse dia um grupo revolucionário inicia um golpe de Estado. O General, não podendo sair do banheiro, dá instruções da privada para o resistentes que vêm ouvi-lo através da basculante. Toda a peça se dá no banheiro, com o General tentando articular a resistência sentado na privada gritando para seus subordinados que vem e vão até a basculante do banheiro que dá para o jardim da casa. Ao final do dia, quando o Golpe se consolida e os revolucionários vencem, um soldado da revolução invade o banheiro do general. Nesse exato instante o General se liberta da prisão de ventre, se alivia e é fuzilado. A última palavra da peça é do soldado: - Morreu como sempre viveu: na merda. Abraço, Juliano
Enviado por Giba Assis Brasil em 19 de junho de 2013.
Que ótimo isso, Juliano. Não tinha a menor ideia. Aliás, conheço vários filmes baseados em Moravia (O desprezo, O conformista, Duas mulheres, Eu e elas, A desobediência), mas nunca li um livro dele. Grande abraço.