Um homem, uma câmera

por Jorge Furtado
em 20 de junho de 2013

O alerta de Noam Chomsky de que o projeto que tinham para nós era o de “um homem, uma tela” foi mais do que justificado, consumidores online é o que quase todos somos, faz tempo. O estágio seguinte, “um homem, uma câmera”, agora atingido, muda tudo. Some-se a isso a capacidade imediata de publicar tudo e temos uma nova rede social capaz de se fazer ouvir, de mobilizar multidões em segundos. Não sei quantos dos manifestantes nas ruas das cidades do Brasil tem câmeras em seus celulares, vou atirar por baixo que sejam 10% deles. Com 300 mil pessoas na rua, são 30 mil câmeras, difícil iludir 30 mil câmeras. Seja o que houver nas ruas, nós veremos.

O primeiro recado evidente do Movimento Passe Livre, reivindicação mais do que legítima, urgente, de melhores condições de transporte público, é o de que a rua existe, há vida fora do facebook, vida com ônibus lotados e eternas promessas de metrô. Dona Mídia Maria, que não anda de ônibus, furiosa com os baderneiros que atrapalham ainda mais o trânsito, achou que a polícia foi até boazinha dando tiros de borracha naqueles vândalos. Isso na quinta. No domingo, dona Mídia se empolgou: são heróis, jovens idealistas, protestando contra a corrupção, o mensalão e a inflação, para o bem da nação. O que esses jovens querem mesmo é o aumento da taxa da Selic, para conter a inflação galopante que se aproxima, prova está no preço da cenoura, enfim, foram às ruas para pedir mais lucro para os bancos, foi isso.

Sem querer fazer filosofia numa hora dessas, mas já fazendo, a internet, com seus blogs, youtubes, facebooks, twiters e tais e suas infinitas câmeras, impõe uma nova consciência, a de que agora quase tudo é público e eterno: tudo o que for dito e feito poderá ser visto e ouvido por todos, para sempre.

Lembrei de um conto de Fredric Brow, “Resposta”, escrito em 1954*. Num futuro distante, os sábios do universo se unem para interligar num só sistema todos os computadores de todos os planetas habitados, noventa e seis bilhões de planetas.

“Dwar Ev soldou solenemente a junção final com ouro. Dwar Reyn dirigiu algumas palavras aos trilhões de telespectadores. Dwar Ev ligou a chave. Ouviu-se um zumbido fortíssimo, o surto de energia proveniente de noventa e seis bilhões de planetas. As luzes se acenderam e apagaram por todo o painel de quilômetros de extensão. Dwar Ev recuou um passo e suspirou fundo.

-- A honra de formular a primeira pergunta é sua, Dwar Reyn.

-- Obrigado - disse Dwar Reiyn. - Será uma pergunta que nenhuma máquina cibernética foi capaz de responder até hoje.

Virou-se para o computador.

-- Deus existe?

A voz tonitruante respondeu sem hesitação:

-- Sim, agora Deus existe.O rosto de Dwar Ev ficou tomado de um súbito pavor. Saltou para desligar a chave. Um raio fulminante, caído de um céu sem nuvens, o acertou em cheio e deixou a chave ligada para sempre.”

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Dona Mídia, mal-informada, não entende porque os vândalos jogam coisas em seu jardim, gritam no seu portão. Os governos, das cidades, dos estados, do país, garantem que o problema é do país, do estado, da cidade, e não seu. Os partidos juram que é isso mesmo, eu também acho, foi o que eu sempre disse. Enquanto isso os jovens, os estudantes que foram para as ruas lutar por passagem mais barata e tudo mais, já conseguiram passagem mais barata. Agora, ainda bem, eles vão querer tudo mais.

Me Gustan Los Estudiantes (Violeta Parra)

Que vivan los estudiantes,
Jardín de nuestra alegría,
Son aves que no se asustan
De animal ni policía.
Y no le asustan las balas
Ni el ladrar de la jauría.
Caramba y zamba la cosa,
Qué viva la astronomía!
 
Me gustan los estudiantes
Que rugen como los vientos
Cuando les meten al oído
Sotanas y regimientos.
Pajarillos libertarios
Igual que los elementos.
Caramba y zamba la cosa,
Qué viva lo experimento!
 
Me gustan los estudiantes
Porque levantan el pecho
Cuando les dicen harina
Sabiéndose que es afrecho.
Y no hacen el sordomudo
Cuando se presente el hecho.
Caramba y zamba la cosa,
El código del derecho!
 
Me gustan los estudiantes
Porque son la levadura
Del pan que saldrá del horno
Con toda su sabrosura.
Para la boca del pobre
Que come con amargura.
Caramba y zamba la cosa,
Viva la literatura!
 
Me gustan los estudiantes
Que marchan sobre las ruinas,
Con las banderas en alto
Pa? toda la estudiantina.
Son químicos y doctores,
Cirujanos y dentistas.
Caramba y zamba la cosa,
Vivan los especialistas!
 
Me gustan los estudiantes
Que con muy clara elocuencia
A la bolsa negra sacra
Le bajó las indulgencias.
Porque, hasta cuándo nos dura
Señores, la penitencia.
Caramba y zamba la cosa,
Qué viva toda la ciencia!
Caramba y zamba la cosa,
Qué viva toda la ciencia!

Por Mercedes Sosa:

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* da antologia “Máquinas que pensam”, do Asimov, editada pela L&PM.

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Atualizado em 21.06.13

Quando vejo manifestantes tocando fogo no Itamaraty, saqueando lojas ou queimando ônibus, torço pela polícia, espero que identifiquem e prendam todos.

Também não aceito este papo de “contra tudo isto que está aí”, simples assim. Quem sugere uma democracia sem partidos propõe o que em seu lugar?

Contra tudo, ok.

Próximo passo: a favor de quê?