por Jorge Furtado
em 06 de maio de 2014
Na tarde do último sábado, dia 4 de maio, na cidade de Guarujá, estado de São Paulo, Fabiane Maria de Jesus, 33 anos, casada, dona de casa, com duas filhas, foi espancada até a morte, à luz do dia, em frente às câmeras, por seus vizinhos.
Seu marido, Jailson Alves das Neves, afirma que Fabiane foi assassinada por um grupo de linchadores por ter sido acusada, numa página de notícias no facebook, de sequestrar crianças e praticar magia negra. “Eles colocaram uma foto de uma pessoa parecida e todo mundo achou que era ela. Quando ela voltou para o bairro, a cercaram e começaram as agressões”.
Fabiane e Jailson estavam casados há 17 anos e tinham duas filhas, uma de 12 anos e outra de um ano e meio. Além das duas meninas, Fabiane também cuidava de três sobrinhos pequenos. Depois do linchamento, amigos de Fabiane se manifestaram nas redes sociais. “Ela era tranquila, amável, muito dócil. Todo mundo na rua gostava dela”. “Nunca vi ela agressiva com ninguém, nem com as próprias filhas. As pessoas acreditam em tudo e acaba acontecendo uma tragédia”.
O site G1 publicou as imagens do linchamento. As cenas são assustadoras, aterrorizantes, garantia de pesadelos, mas acho que precisam ser vistas.
Fabiane, inconsciente, é jogada no chão e agredida com uma tábua. É arrastada pelas ruas, aos gritos de “vagabunda”, e jogada na estrada. Ao 1 min e 10 segundos deste filme de terror, Fabiane tenta erguer a cabeça, ainda está viva. “É ela mesmo!”, diz um dos assassinos. Alguém pergunta: “Tem certeza, irmão, que é ela mesmo? Tem certeza?”
No dia 6 de abril, um domingo, numa cidade do Espírito Santo, um jovem negro de 17 anos, Alailton Ferreira, foi espancado até à morte, vítima de um boato de que teria cometido um estupro e um roubo. Alailton tinha problemas mentais. O irmão contesta as acusações: “Ele chamou a menina, ela se assustou e correu para chamar a família. Os familiares e vizinhos correram atrás dele. Por isso as pessoas falaram que ele era estuprador”. Um morador do bairro também colocou as acusações sob suspeita: “Ninguém viu esse tal estupro ou mesmo noticias da suposta vítima”.
O que leva um grupo de seres humanos a tamanha crueldade? Não havia, na comunidade de Fabiane, nenhum caso de criança sequestrada ou desaparecida, apenas um boato na internet, uma foto e um retrato de uma mulher vagamente parecida com Fabiane. Não havia, na comunidade de Alailton, relato ou denúncia de nenhum dos crimes dos quais o acusavam. Então por que foram brutalmente, covardemente assassinados?
É impossível aceitar, mas talvez seja possível entender melhor a morte de Fabiane e Alailton se atentarmos para o fato de que eles não foram mortos por paus e pedras. Eles foram mortos pela mentira e pelo preconceito, eles foram mortos por palavras.
Arthur Koestler, o jornalista e escritor húngaro, judeu, viveu duas guerras na Europa e sabe do que está falando quando tenta entender a estupidez humana e sua capacidade quase ilimitada de provocar perseguições, sofrimento e dor:
“A mais mortífera das armas humanas é a linguagem. O homem é tão suscetível de ser hipnotizado por slogans, quanto é indefeso às doenças infecciosas. Mas quando surge uma epidemia, o espírito de grupo assume o comando. E segue as próprias regras, bem diferentes das regras de conduta dos indivíduos. Quando uma pessoa se identifica com um grupo, sua capacidade de raciocínio diminui e suas paixões se intensificam por uma espécie de ressonância ou realimentação positiva. O indivíduo não é um assassino, mas o grupo é. E, por se identificar com o grupo, o indivíduo se transforma num assassino. Essa é a infernal dialética refletida na história das guerras do homem, das perseguições, dos genocídios. E o principal catalisador dessa transformação é o poder hipnótico da palavra. As palavras de Adolf Hitler foram os mais poderosos agentes de destruição em sua época. Muito antes de se inventar a imprensa, as palavras do Profeta escolhido de Alá provocaram uma emotiva reação em cadeia que sacudiu o mundo, desde a Ásia Central até as costas do Atlântico. Sem palavras, não haveria poesia - nem guerra. A linguagem se constitui no principal fator de nossa superioridade em relação aos irmãos animais - e, em razão de seu explosivo potencial emotivo, numa constante ameaça à sobrevivência”.
Numa sociedade em que quase todos consomem e também produzem informações, onde as palavras e imagens circulam, ecoam e se reproduzem sem qualquer critério, onde a exclamação, o grito e a raiva ocupam cada vez mais o lugar do bom senso, da lógica, do diálogo, onde quase todos falam e acreditam em tudo de mau e em quase nada de bom, é de se esperar que as palavras de fúria encontrem ouvintes propensos a atear fogo ao descontentamento, à frustração, ao preconceito, e transformem seres humanos, não em animais irracionais mas, ainda segundo Koestler, em coisa bem pior que isso:
“O Homo sapiens é praticamente o único ser do reino animal carente de salvaguardas instintivas contra a matança de seres da mesma espécie, isto é, de membros de sua própria espécie. A “Lei das Selvas” só conhece um único motivo legítimo para matar: a necessidade de alimentação. E isto apenas sob a condição de que o predador e a presa pertençam a espécies diferentes. No seio da mesma espécie, a competição e o conflito entre indivíduos ou grupos resolvem-se por simbólicas posturas de ameaça ou por cerimoniosos duelos que terminam com a fuga ou gesto de rendição de um dos oponentes, raramente provocando ferimentos mortais. As forças inibidoras - tabus instintivos - contra a morte ou os ferimentos graves causados a seres da mesma espécie são tão fortes na maioria dos animais - inclusive nos primatas - como os instintos da fome, do sexo ou do medo. O homem é o único (afora alguns controvertidos fenômenos observados entre ratos e formigas) a praticar a matança de seres de sua espécie, em escala individual e coletiva, de maneira espontânea ou organizada, por motivos que variam desde os ciúmes sexuais até sofismas de doutrinas metafísicas. O permanente estado de guerra entre coirmãos é uma característica básica da índole humana”.
Lao-tse afirmava que, para a construção de um estado de paz e harmonia, a primeira providência a ser tomada era “reformar a palavra”. Se começarmos agora, precisaremos ainda de algumas gerações de brasileiros, com investimento sério em educação de qualidade (e jornalismo de qualidade, e televisão de qualidade), para que a barbárie deixe de ser um espetáculo diário, para que os pregadores da fúria e do ressentimento percam seus ouvintes.
Para começar, é um bom exercício que cada um de nós, antes de espalhar um boato, publicar um tuíter, um comentário no facebook ou no blog, uma notícia, manchete de capa ou comentário de rádio ou tevê, escute por alguns segundos aquela voz que, de algum lugar no meio da selvageria, nos pergunta: “Tem certeza, irmão? Tem certeza?”
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Atualizado em 14.05.14
NO RIO, ESTUDANTE EVITA LINCHAMENTO DE LADRÃO
O Globo, 14/05/2014 - 11:33
Intervenção de jovem interrompeu agressão até chegada da polícia
“Eu me confrontei com animais”. Foi assim que a estudante de arquitetura Mikhaila Copello, de 22 anos, definiu o que presenciou e viveu na noite da última terça-feira na Freguesia, bairro da Zona Oeste do Rio, um dia depois da morte de Fabiane Maria de Jesus, vítima de linchamento em Guarujá. Sozinha, ela evitou que a ira de um grupo de moradores da região matasse um jovem que acabara de roubar um celular.
Por volta das 19h30, sentada em um bar, ela ouviu os gritos de “pega ladrão”. O ladrão, um jovem branco, parrudo, baixo, de cabelos pretos, foi cercado no alto de uma ladeira e, ao tentar correr do garoto que o havia denunciado, levou uma rasteira.
-- O que gritava deu um chute no pé dele e ele voou de cara no chão. Abriu o supercílio, rasgou a testa, o joelho, e, nesse momento, eu falei para a minha amiga: segura as coisas que estou indo lá. Quando olhei para trás, o garoto estava chutando a cabeça dele com muita raiva, gritando “bandido de merda”. Entrei na frente e gritei “Para com isso”. Puxei o cara pela camisa e coloquei na parede. Ele estava totalmente desnorteado. Foi aí que comecei a ouvir “mata”, “tem que deixar morrer”, e até o clássico “bandido bom é bandido morto”. E eu gritava “vocês não são Deus, não podem julgar quem morre e quem vive” - contou a estudante ao GLOBO.
Ela disse que foi pedir ao garçom do bar um pano para limpar o sangue do jovem, mas foi interpelada por um dos presentes, com um cachorro.
-- Quando fui pegar o pano, esse cara enorme me segurou e disse: você não vai chegar perto dele não, ele é bandido, ele vai morrer. Eu comecei a gritar, o empurrei e dei o pano. Quando me aproximei, o cara falou: “Ele deu sorte de você estar aqui, porque eu ia deixar meu cachorro matar ele”.
Segundo Mikhaila, depois de meia hora a polícia chegou.
-- O PM entrou e disse: “Se gosta de bandido, leva pra casa”. E todo mundo bateu palma. Algemaram o cara, que me olhou nos olhos e disse: obrigado. Comecei a chorar compulsivamente.
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Atualizado em 17.05.14;
Mais um caso de linchamento.
Um homem de 45 anos teria sido linchado por moradores do bairro Aero Rancho. O grupo teria praticado o crime, pois achou que o pedreiro Hugo Neves Ferreira seria um estuprador já que ele estava nu no momento do crime. O 5º Departamento de Polícia investiga o caso e autores podem pegar de 12 a 30 anos de prisão, caso linchamento for confirmado.
As lágrimas são de uma mãe que acabou de perder o filho de uma maneira brutal Hugo Neves Ferreira de 45 anos, teria sido linchado, por moradores que pensaram que o pedreiro era um estuprador.
“Só tristeza porque meu filho era um homem trabalhador, um homem honesto, tinha a família dele, para acabarem com meu filho do jeito que acabaram”, diz a mãe, Rosa Tassião Correia.
O crime aconteceu nesse quarta-feira (14), a esposa do pedreiro, Denise Carvalho conta que ele estava em casa, por volta das 22h quando houve um desentendimento entre os dois. Sob efeito de bebida alcoólica, ele pulou o muro que fica no fundo do terreno e dá acesso a casa da irmã dele.
“Ele veio assim para me bater, então quando ele me bateu, eu estava falando com a minha cunhada no telefone e deixei o telefone cair no chão, foi na hora que meu sogro me socorreu e eu pensei que ele deitou La dentro da casa, mas não, pegou e saiu, pulou o muro da minha cunhada e não sei se ele confundiu a casa, não sei. Ele enganchou o shorts dele e quando puxou sal o shorts e as pessoas confundiram ele como estuprador”, relata a esposa.
Hugo só foi encontrado aproximadamente meia hora depois que pulou o muro um amigo conhecido como Paulo Cesar o viu em uma esquina sendo espancado por populares, foi ele quem afastou as pessoas e levou o pedreiro em segurança para casa, mas o homem já estava muito debilitado.
Hugo chegou a ser socorrido e levado para Santa Casa de Campo Grande, mas não resistiu. O crime está sendo investigado pelo 5º departamento de polícia.
“Nós estamos investigando a partir das informações que foram passadas inicialmente pelos próprios familiares. As pessoas que agiram assim com a vítima, não procuraram ter o mínimo de cuidado necessário, pois se aproximassem dele com certeza viriam que ele estava embriagado, poderia ser uma pessoa que havia sido assaltada e estava sem roupa na rua e não tiveram esse cuidado na abordagem e já praticaram esse crime bárbaro”, explica delegado João Reis.
Se as investigações confirmarem que Hugo foi realmente linchado, os autores vão responder por homicídio doloso por motivo fútil.(Com colaboração Natalie Malulei, TV MS Record)
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Mais sobre os casos:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/05/1450459-nao-sabia-se-ela-era-inocente-diz-eletricista-preso-em-guaruja.shtml
Fontes:
Arthur Koestler, in Jano. Tradução de Nestor Deola e Ayako Deola. Editora Melhoramentos, São Paulo.
Sobre Arthur Koestler:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Arthur_Koestler
Sobre a morte de Alailton Ferreira:
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2014/04/jovem-negro-e-espancado-e-
Sobre a morte de Fabiane Maria de Jesus:
http://noticias.r7.com/sao-paulo/dona-de-casa-espancada-ate-a-morte-por-causa-de-boato-sonhava-em-ver-a-filha-formada-05052014