Robinson Crusoé falava português, se naturalizou brasileiro, morou na Bahia

por Jorge Furtado
em 22 de outubro de 2016

Um dos mais célebres e populares romances de todos os tempos, o primeiro em língua inglesa, o livro que inaugurou um gênero - a narrativa autobiográfica ficcional que hoje chamamos de romance -, trazia em seu frontispício o título e o resumo da história, como era comum na época:

“A vida e as estranhas e surpreendentes aventuras de Robinson Crusoé, de York, marujo: que viveu vinte e oito anos numa ilha deserta na costa da América, perto da embocadura do grande rio Orinoco; tendo sido lançado à costa por um naufrágio, no qual morreram todos os homens, menos ele. Com um relato de como foi, afinal, estranhamente salvo por piratas. Escrita por ele próprio.” No prefácio, “o editor julga que o relato seja uma história fiel de fatos, nem existe nela qualquer aparência de ficção”.

Tudo mentira, claro. O autor do romance, Daniel Defoe, era jornalista político e nunca tinha escrito ficção. Seu relato sobre as aventuras de um náufrago isolado numa ilha do hemisfério sul, escrito com impecável rigor documental, é totalmente inventado. Foi inspirado na história de um marinheiro escocês, Alexander Selkirk (1676-1721), que ficou, espontaneamente, por 4 anos numa ilha chilena, “Más a Tierra”, hoje oficialmente chamada “Isla Robinson Crusoe”, e possivelmente também na tradução de “O Filósofo Autodidata”, de Ibn Tufail, romance do século XII que conta a história de um homem isolado numa ilha.

A ideia de sentar em casa e inventar histórias que parecem verdadeiras, hoje a profissão de muita gente, é bastante recente e não foi facilmente aceita. Até o século XVI as narrativas orais eram epopeias, mitos, lendas, fábulas ou narrações biográficas. Em 1543, o Real Conselho das Índias publicou um decreto proibindo a publicação de “histórias mentirosas”, que “causam muitos danos”, fazendo os índios abandonarem os livros da “santa e reta doutrina” para ler histórias de onde “extraem maus hábitos e vícios”. Em 1588, Malón de Chaide reclamava do efeito que as novelas de cavalaria, que iriam enlouquecer Dom Quixote, poderiam ter sobre os leitores: “Que efeito causaria numa inteligência medíocre uma tolice inventada no inverno diante de uma lareira, segundo o critério de alguém que a sonhou?”

O fato é que Defoe inventou tudo e o livro, publicado pela primeira vez em 1719, foi um extraordinário sucesso, primeiro como folhetim num jornal, The Daily Post, e depois como romance, logo seguido de uma continuação. Muita gente que leu “Robinson Crusoé” achando ser um relato verdadeiro não gostou de ter sido enganada e o livro, na sua segunda edição, esclarecia que se tratava de uma “história fictícia”. Segundo Catherine Gallagher, os romances do século XVII “moviam-se todos no interior do jogo linguístico que dava por certa, em uma narração crível, a correspondência entre um nome próprio e um indivíduo real. Defoe asseverava que existia efetivamente um indivíduo de nome Robinson Crusoé”. Ele chega ao requinte de traçar a origem da família e do nome de seu personagem:

“Nasci no ano de 1632, na cidade de York, de uma família boa, embora não original daquela época, sendo meu pai um estrangeiro em Bremen, que se estabeleceu primeiro em Hull. Acumulou boa fortuna com o comércio e, deixando este ofício, instalou-se depois em York, onde se casou com minha mãe, cuja família chamava-se Robinson, muito boa família daquela região, ao que devo o meu nome de Robinson Kreutznaer; todavia, devido a corrupção costumeira das palavras na Inglaterra, somos hoje chamados, melhor, nós mesmos nos chamamos, e nos assinamos, Crusoé”.

O autor finge dizer a verdade e esta “inútil precisão” do romance realista, lembra Jorge Luis Borges, com seus reiterados traços de verossimilhança, faz com que “esqueçamos seu caráter de artifício verbal”. A única maneira de distinguir um relato jornalístico, documental, de um romance realista, é acreditar na palavra do autor e do editor, que nos informam se o livro é ficção ou não ficção. É claro que eles podem estar mentindo, como foi o caso de Defoe.

Antes de naufragar e se estabelecer em sua ilha, Robinson Crusoé viveu quatro anos no Brasil.

“Fizemos uma ótima travessia até os Brasis, e chegamos à Baía de Todos os Santos, no porto de São Salvador, dali cerca de vinte e dois dias. (…) Acumulei cerca de duzentos e oitenta pesos duros de prata com minha carga, e com este patrimônio cheguei aos Brasis. E não fazia muito tempo que ali me encontrava quando fui recomendado à casa de um homem bom e honesto que possuía um “engenho”, como dizem, a saber, uma plantação de cana e uma casa de refino de açúcar. (…) E vendo como os donos viviam, e como enriqueciam depressa, decidi, se obtivesse licença para me estabelecer ali, que me transformaria em produtor de açúcar como eles. (…) Com este fim, e obtendo uma carta de naturalização, comprei o máximo de terras incultas que o meu dinheiro permitia. (…) No terceiro ano plantamos um pouco de tabaco. Produzi cinquenta rolos grandes de tabaco em minhas terras, além do que distribuí para consumo entre meus vizinhos. (…) O leitor pode imaginar que, tendo eu a esta altura vivido quase quatro anos nos Brasis, começando a prosperar e a aumentar a produção de minha propriedade, não só aprendi a língua como também travei conhecimento e amizade com vários outros proprietários, além de mercadores de São Salvador, que era o nosso porto”.

A fazenda de Robinson cresce, começa e lhe faltar mão de obra e ele faz sociedade com um mercador de escravos em uma viagem à costa da Guiné. “E me propuseram que eu ficaria com uma parte igual de Negros, sem precisar contribuir com dinheiro para a empresa”. É nesta viagem, em busca de escravos, que o navio naufraga. Robinson é o único sobrevivente. “Tinha alcançado a costa da Guiana, ou a parte norte do Brasil, para além do Rio Amazonas, e na direção do Rio Orinoco”. Ele vai parar numa ilha e o resto da história todo mundo sabe.

Não tivesse sido empurrado pela cobiça e partido em busca de escravos, Robinson Crusóe poderia ter vivido e envelhecido em paz, plantando fumo na Bahia e aproveitando as praias de Salvador. Um destino muito agradável, mesmo para um personagem de ficção.

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Bibliografia:

Defoe, Daniel. Aventuras de Robinson Crusoé. Livraria Garnier, Rio de Janeiro. Sem data. Tradutor não creditado.

Defoe, Daniel. Robinson Crusoé. Editorial Bruguera, Rio de Janeiro. Sem data. Tradução de Primavera da Neves.

Defoe, Daniel. Robinson Crusoé. Companhia das Letras, São Paulo, 2011. Tradução de Sergio Flaksman. Organização e notas de John Richetti.

Moretti, Franco (org.). A cultura do romance. Cosac Naify, São Paulo, 2009. Tradução de Denise Bottmann.