Antônio observa que a expressão “a corda e a caçamba” está presente em vários sambas. E questiona se ela teria sido inventada por algum sambista, por causa da rima, ou se já existia anteriormente, e o tal sambista só a fixou em letra. Antes de mergulhar no Google, me lembro dos Originais do Samba da minha adolescência, e de uma dupla de jogadores do Inter, bem antes de eu nascer.
A palavra e a expressão
Caçamba, pra linguagem de hoje, é antes de tudo a parte traseira do caminhão. Mas a primeira definição que aparece no Houaiss é “vaso preso por uma corda à roda da nora (isto é, do engenho), para tirar água de poços”. Ou seja, o balde do poço, que só tem serventia se estiver amarrado a uma corda. Daí a expressão “corda e caçamba”, duas coisas que funcionam bem juntas, ou duas pessoas inseparáveis. Unha e carne, cu e calça, Tico e Teco, Romeu e Julieta, dá no mesmo - mas nada disso rima com samba.
O “Dicionário de termos e expressões da música”, de Henrique Autran Dourado (ed. 34, 2004), sugere que caçamba seria também “designação popular para a caixa de ressonância dos instrumentos de cordas como o violão”, e dá como abonação uma mistura de duas letras de Noel Rosa. Não identifiquei esse sentido em Noel, ou em qualquer outro lugar.
Alguns saites na internet listam “Aonde vai a corda, vai a caçamba” entre os “provérbios portugueses”, mas nenhum que eu encontrei explica a sua origem, ou faz uma datação razoável. Segundo o Houaiss, a palavra caçamba vem do quimbundo “kisambu”, no sentido de “cesta, cesto grande” e só está registrada em português a partir de 1853. Se é assim, então o tal provérbio não é tão antigo quanto algumas listas dão a entender.
O samba e a bola
Nosso ponto de partida é o já clássico samba “Esperanças perdidas” (“Já fui batizado na roda de bamba / O samba é a corda, eu sou a caçamba”), de Adeilton Alves e Délcio Carvalho, gravado pelos Originais do Samba em 1972 (eu jurava que tinha sido antes), no álbum “O samba é a corda, os Originais a caçamba”.
Mas eu lembrei também que Osvaldo Brandão (1916-1989), jogador de futebol do Internacional e do Palmeiras (lateral direito e centro-médio), depois técnico de vários clubes e da seleção brasileira (em três momentos, entre 1955 e 1977), aqui era conhecido como “o caçamba”. E lembro de meu pai contar que “a corda” era o meia-direita e centroavante Sylvio Pirillo (1916-1991), que além do Inter jogou no Peñarol, Flamengo e Botafogo - e depois foi treinador, também da seleção (1957). Mas Brandão (nascido em Taquara/RS) e Pirillo (portoalegrense) só jogaram juntos aqui no Inter, formando a dupla que ficou conhecida como “corda e caçamba”, entre 1937 e 1939, pouco antes do “Rolo compressor”.
Paulo Roberto Falcão, em seu “Histórias da bola” (ed. L&PM, 1996), conta de sua convivência com Osvaldo Brandão, seu treinador na seleção brasileira, nas eliminatórias para a Copa de 1978: quarenta anos depois, Brandão não gostava de ser chamado pelo apelido “Caçamba”, e é claro que os jogadores o provocavam sempre que podiam.
Outros sambas
Depois de “Esperanças perdidas” (1972), há uma enxurrada de sambas usando a mesma rima: “Eu trouxe a corda, só me falta a caçamba / E sei que você tem / Não negue que você gosta de samba” (“Caçamba”, Grupo Molejo, 1994); “É a canoa e o rio, é a corda e a caçamba / Não tem erro, não dá outra / Vai dar samba” (Peninha, “Vai dar samba”, 1999); “Tragam a corda e a caçamba / Que o meu neto seja herdeiro / Do meu amor pelo samba” (“Orgulho do Vovô”, Zeca Pagodinho, 2010); etc.
Mas antes também tinha: “A corda e a caçamba”, de Antônio Almeida, foi gravado pela Elza Soares no LP “Sambossa”, de 1963 (“Eu não posso viver sem o samba / O samba é a corda, eu sou a caçamba”). “Corda e caçamba”, de Ataulfo Alves (“É por isso que no samba / Sou aquilo que se vê, / Sou a corda da caçamba / E a caçamba é você”) está no álbum “Meu samba, minha vida”, de 1962, mas certamente é anterior, até porque se trata de uma antologia. Ataulfo (1909-1969) teve composições gravadas desde 1933, e eu não encontrei nenhuma lista com datação completa. Mas existe ainda outro “A corda e a caçamba”, de João Tomé, 1942, pra ser cantado a duas vozes: “Eu sou a corda / Eu sou a caçamba / Somos da orgia, somos do samba”.
Noel
Mas antes de tudo isso, claro, teve Noel Rosa. Em “O x do problema”, gravado por Araci de Almeida em 1936, tá lá a expressão imortalizada: “O samba é a corda, eu sou a caçamba / E não acredito que haja muamba / Que possa fazer eu gostar de você”. Certamente foi a partir daí que a dupla Brandão e Pirilo, poucos anos depois, virou “corda e caçamba”.
Mas permanece a dúvida, no caso, “o x do problema”: Noel teve a genialidade de inventar a expressão para colocá-la na sua letra? ou Noel teve a genialidade de captar nas ruas a expressão e encaixá-la no samba? Qual das genialidades seria maior?
Estudiosos da música e da língua brasileira podem responder bem melhor do que eu. Mas uma referência no “Acervo Pixinguinha”, do Instituto Moreira Salles, dá uma pista que sugere a primeira opção. Em outubro de 1926, numa polêmica com o sambista Sinhô pelo Correio da Manhã, o baiano Cícero de Almeida, parceiro de Pixinguinha em várias composições, escreveu em versos: “Elle diz que é poeta / E rei do samba / Este cara de caçamba / Canela de sabiá…” Ora, se um sambista em 1926 rimou samba com caçamba e não falou na corda, ou a expressão não era conhecida, ou ele a evitou por estar em casa de enforcado, ou ainda faltavam 10 anos pra chegar Noel.
A caçamba, a corda e o poço