Duas iniciativas recentes, um livro de crítica e uma plataforma digital, ajudam a desvendar o panorama recente do audiovisual de Porto Alegre e arredores.
O livro, lançado agora em março, é uma produção da ACCIRS, Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e se chama, bem apropriadamente, “50 olhares da crítica sobre o cinema gaúcho”. Ao contrário de outras antologias do gênero, o grupo atualmente presidido por Fatimarlei Lunardelli teve a lucidez de evitar os rankings e listas de “melhores da década” ou “da história” e simplesmente pediu a 50 críticos que escrevessem sobre filmes realizados aqui a respeito dos quais eles tivessem alguma coisa a dizer. Um belo critério, talvez o melhor possível pra se escrever uma crítica, ou resenha, ou um relato pessoal, ou mesmo pra se fazer um filme.
O resultado é um belo passeio pela história das nossas imagens em movimento, com abertura para algumas perspectivas de futuro. Tem textos sobre filmes da minha geração, mas também de momentos anteriores (“Vento norte”, “Pontal da solidão”), dos que vieram logo depois de nós (“Morro do céu”, “Mudança”) e até dos primeiros egressos dos cursos superiores de cinema do estado (“Castanha”, “Sobre sete ondas verdes espumantes”, “Glauco do Brasil”). Tem filme de gênero (“Porto dos mortos”), animação (“A cidade dos piratas”) e cinema experimental (“Muito romântico”). Talvez ainda tenha pouco cinema negro (de “Um é pouco, dois é bom” a “O caso do homem errado”) e mesmo cinema indígena (“Teko Haxy”), mas essas são histórias que estão começando a ser contadas. E talvez ainda falte mais cinema com ponto de vista feminino (“O cárcere e a rua”, “Mulher do pai”) ou LGBT (“Beira-mar”, “Tinta bruta”). Mas tem até filmes dos quais eu nunca tinha ouvido falar - o que, pra quem está há 40 anos envolvido nesse universo, é uma supresa e uma revelação.
Ficou coisa importante de fora? Ótimo! Motivo pra, daqui a algum tempo, catar e publicar mais 20 ou 50 ou 100 olhares, conforme for o caso.
Até porque essa multiplicação de olhares ficou mais fácil desde dezembro, com o lançamento da plataforma Sulflix, iniciativa da produtora cultural Dani Menegotto, e que pretende reunir tudo que for possível do audiovisual gaúcho: curtas, longas, séries, clipes musicais, registros de teatro e de shows, especialmente coisas que não estavam disponíveis na rede - ou estavam, mas a gente não encontrava.
Uma das seções do catálogo da Sulflix se chama justamente “50 olhares da crítica”: 16 dos filmes resenhados no livro da ACCIRS já estão lá, e sei que outros estão sendo negociados. Tem também seções de “clássicos gaúchos”, “diretoras mulheres”, “curtas universitários” e um número ainda pequeno, mas significativo, de obras com acessibilidade. Eu, como um dos primeiros assinantes, estou assistindo muita coisa que eu tinha perdido por um motivo ou por outro, e revendo coisas que eu não via há muito tempo: obras escritas, dirigidas, fotografadas e montadas por colegas, ex-alunos, conterrâneos e contemporâneos que eu ainda preciso conhecer.
No coquetel de lançamento do livro, uma dessas poucas aglomerações a que vamos nos permitindo nesses tempos ainda incertos do quase-pós-pandemia (todo mundo com máscara no rosto e vacina no braço!), o crítico e curador Marcos Santuário me perguntou que produções recentes poderiam estar no próximo Festival de Gramado. E eu não tinha a menor ideia. Daí a constatação: foi-se o tempo em que eu, ou qualquer outro diretamente envolvido, podia simplesmente olhar em volta e dizer que filmes estavam sendo feitos.
O momento não é bom para o cinema brasileiro: a Ancine parece ter-se tornado uma espécie de Tribunal do Santo Ofício, mais preocupada em perseguir cineastas do que em apoiar a produção; e as grandes plataformas de streaming estrangeiras seguem atuando no país sem qualquer regulamentação. Mas, seja como for, a roda não parou. Foi-se o tempo em que a produção audiovisual de Porto Alegre e do estado se media apenas pela presença em Gramado. Ainda bem.
(publicado na revista Parêntese especial - Porto Alegre 250 anos, mai/2022, pp. 37-38)