Meu pai me ligava quase todo dia, onde quer que eu estivesse, para comentar qualquer coisa, política, uma música ou livro, uma piada. Uma noite eu estava em Xapuri, no Acre, num bar na beira de um rio amazônico, tocou o telefone no orelhão da praça, um homem que passava atendeu e depois gritou: “Tem algum Jorge aí?” Era o meu pai, no hotel disseram que eu podia estar por ali, ele queria comentar um livro que estava lendo, mas isso é outra história.
1990, fui convidado para ser jurado do festival de curtas de Oberhausen, o mais antigo do mundo, na Alemanha recém unificada, uma festa de filmes. Aceitei o convite muito animado, sem perguntas. Só lá eu descobri que eram mais de 200 filmes concorrendo numa semana de festival e que, pelo regulamento, os curtas poderiam ter até 59 minutos. E muitos tinham, embora parecessem ter bem mais.
O fato é que nós, 11 jurados de diferentes países, tínhamos que ver filmes da manhã à noite, sob vigilância dos atentos colaboradores do festival, cuja tarefa principal era não nos deixar dormir. Documentários sobre criadores de cabras no Curdistão, filmes narrados em francês, com depoimentos em chinês e legendas em inglês, 50 minutos, depois do almoço. Felizmente pelo menos uma vez por dia aparecia um ótimo filme e a turma de jurados era muito divertida, com uma exceção: um cineasta búlgaro cujo nome eu perdi e nunca procurei, que mal cumprimentava os colegas e fumava sem parar, fazendo anotações. (O filósofo Ivan Krastev lembra que existem três tipos de pessoas: “Os otimistas, os pessimistas e os búlgaros”)
Sábado, reunião final do júri, que começou depois do café e iria até o final do dia, num salão do hotel. Eram muitos prêmios, muitos jurados, de 11 países. A língua geral da sala era o inglês, mas o cineasta búlgaro só falava búlgaro, um intérprete traduzia, primeiro para o alemão, depois e para o inglês. Eu e um cubano, quando o debate esquentava e faltavam adjetivos, nos socorríamos com uma intérprete. (Ana Skalon, saudosa amiga argentina, produtora do Channel Four, que falava uma dúzia de línguas.)
Foi um dia exaustivo de trabalho, já eram quase onze da noite, chegou a hora de definir o prêmio de “Melhor Filme Experimental”, um conceito amplo como um continente. Entre os filmes tinha um curta francês que eu achei espetacular, poético, comovente, estranho, nove minutos de boas ideias, e muito engraçado, chamado “Foutaises” (besteira). Falei tanto do filme durante a semana que meus colegas já me chamavam de Jorge Foutaises. Defendi o prêmio para o filme. Acontece que o búlgaro não gostou nada do curta francês, disse que não era experimental o suficiente, achou que era uma besteira (e era mesmo, desde o título), ele queria dar o prêmio para um filme iugoslavo, longo, triste e muito chato, feito com pintura sobre acetato, manchas que se moviam enquanto ouvíamos poemas de um paciente agonizante, que acabava morrendo de AIDS.
Eu reconheci a importância do tema, a AIDS era o flagelo da década, mas alertei para a chatice e incomunicabilidade do filme, só dava para entender que o assunto era AIDS lendo a sinopse, o filme era uma série de manchas que pulavam na tela. Por uma certa implicância recíproca, nosso debate se estendeu. Eu tropeçava em meu inglês precário, que virava alemão e búlgaro, e depois voltava, do búlgaro para o alemão e o inglês.
Era quase meia noite, a jurada da Filipinas juntara três poltronas e dormia profundamente, os despertos já não escondiam seu ódio, até as atentas fraulen da organização nos olhavam com desprezo, mas eu e o búlgaro estávamos irredutíveis, “este júri é pequeno demais para nós dois”, quando a porta abriu e o recepcionista do hotel avisou que havia uma ligação para mim, do Brasil. Só podia ser o meu pai, mas ele nunca ligava tão tarde, pedi licença, deveria ser algum assunto urgente, a esta hora.
Percorri o longo corredor do hotel, o recepcionista me indicou uma cabine, entrei, atendi o telefone, era o meu pai: “O Grêmio empatou, um a um, com Glória de Vacaria”.
Levei alguns segundos para processar a informação. “Pai, eu estou no meio de um debate. Sobre manchas. Em búlgaro. Podemos falar sobre o Grêmio amanhã?” “Claro, um beijo, até amanhã, dorme bem”.
Voltei para a sala do júri, todos me olharam, preocupados, esperando notícias, expliquei o que aconteceu. “O Grêmio empatou com o Glória de Vacaria, um a um”. (Grêmio, my football team, draw the game, one to one, against Glory from a Lot of cows”.) A notícia foi traduzida para o espanhol, inglês, francês, alemão e búlgaro enquanto eu, inspirado pelo campeonato gaúcho, tive a ideia que salvou a noite. “Vamos dividir o prêmio?” A sala aplaudiu, os organizadores exultaram, a filipina acordou (“Let’s split the prize!”). Eu acho que até o búlgaro sorriu. Dividimos o prêmio.
Posfácio da história. O prêmio em Oberhausen de “Melhor Filme Experimental” para “Foutaises” foi o primeiro que o curta ganhou, espero que tenha ajudado no início da carreira de seu jovem diretor, Jean-Pierre Jeunet, que no ano seguinte faria seu primeiro longa, “Delicatessen”, e dez anos depois encantaria o mundo com “O fabuloso destino de Amelie Poulain”. Quem sabe se eu teria suportado a pressão búlgara não fosse o empate do Grêmio e o telefonema do meu pai?