A história que se conta e a história que se escuta.

A religião católica espalhou-se pelo mundo, para o bem e para o mal, destruindo e produzindo arte, aniquilando e construindo culturas. Os exemplos desta influência global são infindáveis.

Jesus é o maior personagem do Ocidente: ao mesmo tempo deus e humano, pai e filho, torturador e torturado. Suas palavras são únicas, revolucionárias, sua história foi contada em todos os cantos do mundo, em todas as línguas.

A Via-Sacra, os Passos da Paixão de Cristo, renderam algumas das maiores obras de arte da história, desde as esculturas em madeira do Mestre Aleijadinho (Antônio Francisco Lisboa (1738-1814), no Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo (MG), até esta história em quadrinhos medieval, do acervo do Museu Arqueológico de Nápoles.

Cada cultura invadida pelos soldados de Cristo assimilou e transformou suas imagens e ensinamentos segundo os seus próprios olhos, e esta visão virou arte, música, e também orações. Aqui, um exemplo de releitura da Via Sacra por um africano do povo Banto, coletada pela revista Apostel der H. Herzen, transcrita em “As Mais Belas Orações de Todos os Tempos”, de Rose Marie Muraro e Frei Raimundo Cintra. (Prefácio de Alceu Amoroso Lima. Editora Pensamento, São Paulo, 2001.)


Um negro Banto reza a via-sacra ao seu modo.

Jesus, chefe mais poderoso de todos, a cor da minha pele é preta, mas o senhor não me olha com desprezo, como fazem tantos homens. Sabe o senhor que eu fui mandado para o curral, para misturar terra com esterco de bois. Estou vivendo na cidade dos brancos. Cuido do jardim de meu patrão e faço a limpeza das máquinas do engenho. O senhor pode ouvir meus passos pela estrada. Deixe-me acompanhar agora o Senhor, por um momento.

Meu chefe, Jesus, vejo o senhor diante da cara branca de Pilatos. Seus pensamentos são falsos como o cachorro dos campos, quando vê o leopardo. As palavras que saem de sua boca cheiram a injustiça. Injustiça! Eu entendo bem esta palavra. Nem posso mais ouvi-la.

Seu pé ferido deve ter batido contra uma pedra dura. Grande chefe, vejo o senhor cair! Foi para mim! A cruz pesada caiu em cima do senhor e nenhuma blasfêmia saiu por entre os dentes brancos de sua boca. O senhor viu minhas costas pretas que virei tantas vezes para o senhor. Caindo, ainda me amou.

Dê-me um coração tão largo como o Vale do Rio dos Elefantes. Tire o ódio do meu coração. Não quero que a ira torne o meu coração revoltoso. Segure os meus punhos cerrados que querem bater o inimigo na cara.

O senhor lançou um breve olhar sobre a bela mulher que é sua mãe. Os olhos dela são meigos como a pele de um persa, o seu rosto tão sublime como o de uma rainha. Ela pôs coragem no seu coração, tirando dele a tristeza amarga.

A vida dolorosa do meu povo é tão longa como o deserto de Kalarari. Precisamos da senhora que o ajudou. Por favor, dê um lugar a sua mãe no centro de nossa aldeia. Dê-lhe a mais bonita cabana, para que ela fique conosco.

Gosto de você, camponês de Cirene. Você levou a pesada cruz, um bom pedaço, para o Senhor Jesus. Você é melhor do que eu.

Jesus, quando não consigo mais puxar a carroça pelas ruas de Joanesburgo, mostre-me o camponês Simão. Dê-me pulmões cheios de ar puro, para que. eu possa correr. Dê-me força aos meus pés nus e bons músculos, para que eu não fique cansado.

O sol quente provocou o suor em sua testa. E lá aparece a boa Verônica. A toalha cobriu sua cara de chefe. E o senhor foi tão agradecido. Dê a todas as mulheres o amor de Verônica. Que tenham coragem de apresentar ao senhor as mais belas toalhas.

Jesus, sei também que na sua segunda queda o senhor pensou em mim. Meus pecados são tão pesados como as pedras de granito do Rio Pinar. Não posso deixar de beber. A cerveja preta é tão gostosa. E muitas vezes também vendo cerveja um pouco cara demais.

É verdade que estou casado e comprei a minha esposa por dez touros. Mas ela não pode morar comigo na cidade. O senhor sabe que visitei muitas vezes a pequena de olhos grandes, que trabalha perto da casa do Judeu. Fico envergonhado diante do senhor e tenho medo! Perdoe-me, Senhor!

Meu Jesus, o seu corpo estendido é como o meu povo preto. Está deitado no chão. Escutam-se as batidas dos martelos. O sangue sai para todas as partes do mundo. Mas sempre nos cortamos a própria carne. Lutamos contra o alto preço das batatas e não comemos batatas. Centenas de pessoas são despedidas do trabalho e não tem mais dinheiro. Compreendo muito bem, Jesus, o que significa “ficar deitado no chão”. Ficar pregado. Compreendo isso muito bem!

Deixe-me ajoelhar diante do senhor, cheio de amor para com todas as raças. Ao lado branco, quero me ajoelhar diante da cruz e agradecer. Quero enterrar o ódio atrás do campo de milho. Neste momento, estamos todos reunidos diante do senhor. Vejo derramar a última gota de sangue. Estou escutando o senhor balbuciar que é para mim e para os seus irmãos brancos. E sua boca, Senhor, se prepara para dar um beijo em cada cor de pele.

Surge nova aurora. Sua via-sacra é esperança para o meu povo. O aloé em flor mostra o caminho para o alto. A cruz, na igreja da selva, anuncia o fim do nosso medo, o medo dos espíritos, que prendeu a nossa vida durante tantos anos. A paz e a alegria, o desejo do alto, vem com o homem de batina preta que nos trouxe a cruz. A cobra-verde pendurada na árvore silvestre não nos amedronta mais como antes. O leopardo não pode tirar a alma do nosso corpo. A seca nos campos de milho pode somente fazer o nosso coração bater mais devagar na morte de fome, mas não nossa alma. Vida nova surge em nossa aldeia. Vem sem o nosso merecimento como a bola de sol de manhã.

Jesus, chefe mais poderoso de todos, a cor da minha pele é preta, mas o senhor não a olha com desprezo, como o fazem tantos outros. Deixe-me andar com o senhor. Fique em nossa aldeia. E eu serei teu servo para sempre.