Kurt Vonnegut: Até personagens paralisados pela falta de sentido da vida moderna têm que beber água de tempos em tempos.
(entrevista concedida por Kurt Vonnegut Jr.)
Pergunta: Acha realmente que a arte de escrever de forma criativa pode ser ensinada?
VONNEGUT: Mais ou menos da mesma maneira que o golfe pode ser ensinado. Um profissional pode apontar falhas óbvias no seu modo de mover o taco. (…) Sei apenas a teoria.
Pergunta: Poderia expor a teoria em poucas palavras?
VONNEGUT: Ela foi formulada por Paul Engle, o fundador da Oficina de Escritores em Iowa. Ele me disse que, se a oficina um dia arrumasse um prédio próprio, estas palavras deveriam ser inscritas sobre a entrada: “Não leve isso tudo a sério”.
Pergunta: E como isso poderia ajudar?
VONNEGUT: Faria os estudantes se lembrarem que estavam aprendendo a fazer brincadeiras. Se você faz as pessoas rirem ou chorarem por causa de pequenas marcas negras em folhas de papel branco, o que é isso a não ser uma brincadeira? Todas as grande linhas básicas de histórias são grandes brincadeiras nas quais as pessoas caem continuamente.
Pergunta: Pode dar um exemplo?
VONNEGUT: O romance gótico. Dezenas de coisas são publicadas todo ano e todas vendem. Meu amigo Borden escreveu recentemente um romance gótico apenas por diversão. Eu lhe perguntei qual era o enredo e ele disse: “Uma jovem arruma um emprego em uma casa velha e depois fica morrendo de medo lá dentro”.
Pergunta: Mais alguns?
VONNEGUT: Os outros não são tão engraçados de se descrever. Alguém entra em apuros e depois escapa; alguém perde alguma coisa e a recupera; alguém é enganado e se vinga; Cinderela; alguém começa a andar para trás e a sua situação só piora cada vez mais; duas pessoas se apaixonam e outras atrapalham; uma pessoa virtuosa é falsamente acusada de um delito; uma pessoa má é julgada virtuosa; uma pessoa encara um desafio com bravura e tem sucesso ou não; uma pessoa mente; uma pessoa rouba; uma pessoa mata; uma pessoa pratica fornicação.
Pergunta: Me desculpe, mas esses são enredos muito antigos.
VONNEGUT: Eu lhe garanto que nenhum esquema de histórias modernas, mesmo sem enredo, dará a um leitor satisfação genuína, a menos que um destes enredos antigos seja introduzido em algum lugar. Não valorizo enredos como representações precisas da vida, mas como maneiras de manter o leitor lendo.
Quando eu ensinava redação criativa, dizia ao meus alunos para fazer com que seus personagens quisessem algo logo, mesmo que fosse apenas um copo d’água. Até personagens paralisados pela falta de sentido da vida moderna têm que beber água de tempos em tempos. (…) Quando você exclui o enredo, quando exclui alguém que deseje alguma coisa, você exclui o leitor, o que é uma atitude mesquinha. Você também pode excluir o leitor não contando imediatamente onde a história se desenrola e quem são estas pessoas. E você pode fazê-lo dormir se não colocar os personagens em confronto uns com os outros. Estudantes gostam de dizer que não apresentam confrontos em seus textos porque as pessoas evitam confrontos na vida moderna. “A vida moderna é tão solitária…”. Isso é preguiça. É o trabalho do escritor apresentar confrontos, para que os personagens digam coisas surpreendentes e reveladoras, eduquem e divirtam a todos nós. Se um escritor não sabe ou não quer fazer isso, deveria retirar-se do negócio”.
. VONNEGUT, Kurt. Entrevista (in “Os Escritores, Vol. 2”), Editora Schwarcz, São Paulo, 1989.
(Auto-retrato)