Para ter água limpa, eles precisam fazer uma obra na comunidade, procuram o governo, mas só há verba para fazer cinema, e então eles resolvem fazer um filme. Saneamento Básico, o filme? Não: Fradim, número 25!
Na busca de completar minha coleção de Fradim (agora faltam só os números 4, 5 e 6), achei o número 25, de maio de 1980. Numa das histórias, Graúna, Zeferino e o bode Orelana, sofrendo com a seca, procuram o poder público, querem verbas para construir um poço artesiano, mas só há verbas para a produção de pornochanchadas.
Muito provavelmente eu li este Fradim na época, 1980, sempre fui fã do Henfil. Talvez eu tenha ficado com essa lembrança guardada em algum canto, e ela reapareceu quando fui escrever o roteiro do filme, quem sabe? Acho pouco provável. Escrevi a história quando, em 2006, o governo lançou um programa de produção de filmes em cidades de até 50 mil habitantes. Eu estava no Festival de Santa Maria (RS), cidade com quase 300 mil habitantes, e alguns jovens cineastas, sem grana para os seus filmes, pensavam em se mudar para Faxinal do Soturno ou Silveira Martins, com menos de 10 mil habitantes.
Minha fábula era a escolha política entre algo fundamental, saneamento básico, e o cinema. A resposta: cinema também é fundamental. Os personagens acabam se envolvendo no fazer cinematográfico e esquecem a obra. Arte e cultura são vitais para um país, tanto quanto obras de saneamento.
A fábula do Henfil começa igual, um poço com água ou um filme, mas o desenvolvimento é outro: sua história é uma denúncia feroz da fome, da sede, do abandono dos mais pobres pelo governo da ditadura militar (já em fim de carreira em plena “abertura”) e da futilidade das pornochanchadas da época.
Plágio, influência, ideia latente ou voando no ar, os conflitos humanos, afetivos, políticos, morais, se repetem em todas as épocas e lugares. Alimentar o corpo ou a alma é uma dúvida que persegue os humanos, desde sempre.
De vez em quando releio um Fradim, Henfil era um gênio. Seu desenho é dos mestres, consegue infinitas expressões de seus personagens com meia dúzia de linhas, traços rápidos, precisos. Como autor, é um dramaturgo brilhante, com personagens complexos, multidimensionais. Henfil mistura política, humor, sexo e psicanálise, sua vida pessoal, sua doença, sua relação com a mãe, saltando do particular para o geral, como só os grandes artistas sabem fazer.