Se eu quiser falar com Deus

Todas as religiões, em todas as épocas, têm algum tipo de oração, e sempre em forma poética. Em seu ensaio sobre Dante, Boccaccio explica por que os seres humanos não vivem se fé. E sem poesia.

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Digressão sobre a origem da poesia

Giovanni Boccaccio

Os primeiros homens, nos primeiros séculos, embora muito rudes e incultos, desejavam ardentemente conhecer a verdade através do estudo, da mesma maneira que nós vemos hoje que qualquer um deseja. Eles, então, vendo o céu se mover constantemente de acordo com leis determinadas e as coisas na terra terem uma certa ordem e acontecerem em tempos determinados, pensaram que necessariamente deveria existir alguma coisa da qual aquilo tudo procedesse e que pusesse ordem em todas as outras, com um poder ao qual nenhum outro poder fosse superior. E tendo feito cuidadosamente aquela investigação, concluíram que deveriam venerar com toda espécie de culto, honra e ritual, aquilo que chamavam “divindade”. E, assim, determinaram construir casas amplas e soberbas para reverenciar o nome daquele poder supremo. Acharam, além disso, que deviam individualizar aquelas casas também no nome, além da forma, para as diferenciar daquelas construídas para os homens morarem e a chamaram de “templos”. Entenderam, também, que deveriam ordenar homens maduros e de bons hábitos como ministros, que fossem consagrados e que ficassem distantes de qualquer atração mundana, dedicando-se apenas aos serviços da divindade e o chamaram de “sacerdotes”.

Além disso, para representar a imaginada essência divina, fizeram magníficas estátuas de vários formatos e, para seu serviço, vasilhames de ouro, mesas de mármore, roupas de púrpura e outros apetrechos destinados ao sacrifício que estabeleceram. E para que não se fizesse a uma tal potência honras tácitas ou quase mudas, acharam que ela deveria ser aplacada e propiciada com palavras poderosas. E como achavam que ela excedia qualquer outra coisa nobreza, quiseram encontrar, longe de qualquer estilo baixo ou comum de falar, palavras dignas de serem pronunciadas diante da divindade,  pelas quais se oferecesse em prece sagradas além disso para que tais palavras parecesse mais eficazes quiseram que fosse composta de acordo com certos ritmos que transmitisse alguma doçura e afastasse os desgostos e os aborrecimentos. E isso, naturalmente, convinha que se fizesse de uma forma artística, refinada, nova, e não vulgar e corriqueira. A essa forma os gregos chamaram poetes e a partir daí se chamou poesis o que se fazia de acordo com aquela forma e se chamaram poetas os que faziam aquilo ou que falavam daquela maneira. Foi essa, portanto, a origem do nome da poesia e, consequentemente, dos poetas, embora outros lhes atribuam outras razões, talvez boas. Mas eu gosto mais desta.

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Giovanni Boccacio (1313-1375), em “Pequeno tratado em louvor de Dante ou Vida de Dante”. Tradução de Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão. L&PM, Porto Alegre, 2021.