"Injustiça! Eu entendo bem esta palavra. Nem posso mais ouvi-la."

As orações, que existem em todas as religiões, em todas as épocas, em todos os lugares, são um retrato dos sentimentos humanos. Quem reza, fala pessoalmente com o seu próprio Deus e pede a ele que o recompense, ampare, aconselhe e perdoe, revelando, ao fazê-lo, seus orgulhos, seus problemas, suas dúvidas e seus pecados.

No ótimo livro “As mais belas orações de todos os tempos”, Rose Marie Muraro e Frei Raimundo Cintra registraram exemplos de orações de povos primitivos em todos os continentes, de civilizações do ocidente e oriente, do judaísmo, do islamismo, dos gregos e romanos, do cristianismo, e também um a série de textos e poemas do século XX. Um dos textos mais interessantes do livro é uma oração de um “negro banto” que comenta os 14 passos da Paixão de Cristo, a Via-Sacra. Os bantos não são um povo, ou uma etnia, o banto é um tronco linguístico que deu origem a diversas outras línguas africanas.

O livro não dá maiores informações sobre o homem, cita como fonte uma revista alemã “Apostel der H. Hertzen”, talvez ele seja da África do Sul, a reza fala em Joanesburgo.  O que sabemos é que este homem era um poeta, passou por grandes sofrimentos, gostava muito de cerveja preta e pedia perdão a Deus por não resistir aos carinhos de uma “pequena de olhos grandes”. Espero que suas preces tenham sido atendidas.

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Um negro banto reza a Via-sacra ao seu modo.

Jesus, chefe mais poderoso de todos, a cor de minha pele é preta, mas o senhor não me olha com desprezo, como o fazem tantos homens. 

Sabe o senhor que fui mandado para o curral, para misturar terra com o esterco de bois. Estou vivendo na cidade dos brancos. Cuido do jardim de meu patrão e faço a limpeza das máquinas de engenho. O senhor pode ouvir meus passos pela estrada. Sou servo que sabe acompanhar o seu patrão. Por isso, deixe-me agora acompanhar o Senhor, por um momento.

Meu chefe, Jesus, vejo o senhor diante da cara branca de Pilatos. Seus pensamentos são falsos como o cachorro dos campos, quando vê o leopardo. As palavras que saem da sua boca cheiram a injustiça. Injustiça! Eu entendo bem esta palavra. Nem posso mais ouvi-la.

Seu pé ferido deve ter batido contra uma pedra dura. Grande chefe, vejo o senhor cair! Foi para mim! A cruz pesada caiu em cima do senhor e nenhuma blasfêmia saiu por entre os dentes brancos de sua boca. O senhor viu minhas costas pretas que virei tantas vezes para o senhor. Caindo, ainda me amou.

Dê-me um coração tão largo como o Vale do Rio dos Elefantes. Tire o ódio do meu coração. Não quero que a ira torne o meu coração revoltoso.

Segure os meus punhos cerrados que querem bater o inimigo na cara.

O senhor lançou um breve olhar sobre a bela mulher que é a sua mãe.

Os olhos dela são tão meigos como a pele de um persa, e o seu rosto tão sublime como o da rainha. Ela pôs coragem no seu coração, tirando dele a tristeza amarga.

A vida dolorosa do meu povo é tão longa como o deserto de Kalacari.

Precisamos da senhora que o ajudou. Por favor, de um lugar à sua mãe no centro de nossa aldeia. Dê-lhe a mais bonita cabana, para que ela fique conosco.

Gosto de você, camponês de Cirene. Você levou a pesada cruz, um bom pedaço, para o Senhor Jesus. Você é melhor do que eu.

Jesus, quando não consigo mais puxar a carroça pelas ruas de Joanesburgo, mostre-me o camponês Simão. Dê-me pulmões cheios de ar puro, para que possa correr. Dê-me força aos meus pés nus e bons músculos, para que não fique cansado.

O sol quente provocou o suor em sua testa. E lá aparece a boa Vernica. A toalha cobriu sua cara de chefe. E o senhor foi tão agradecido. Dê a todas as nossas mulheres o amor de Verônica. Que tenham a coragem de apresentar para o senhor as mais belas toalhas.

Jesus, sei que também na sua segunda queda o senhor pensou em mim.

Meus pecados são tão pesados como as pedras de granito do Rio Pinar. Não posso deixar de beber. A cerveja preta é tão gostosa. E muitas vezes também vendo cerveja um pouco cara demais.

É verdade, estou casado e comprei minha esposa por dez touros. Mas ela não pode morar comigo na cidade. O senhor sabe que visitei muitas vezes a pequena de olhos grandes, que trabalha perto da casa do Judeu. Fico envergonhado diante do senhor e tenho medo. Perdoe-me, Senhor!

Meu Jesus, o seu corpo estendido é como o meu povo preto. Está deitado no chão. Escutam-se as batidas dos martelos. O sangue sai para todas as partes do mundo, mas os cortes são em nossa a própria carne. Lutamos contra o alto preço das batatas e não comemos batatas. Centenas de pessoas são despedidas do trabalho e não têm mais dinheiro. Compreendo muito bem, Jesus, o que significa “ficar deitado no chão”. Ficar pregado. Compreendo isto muito bem!

Deixe-me ajoelhar diante do senhor, cheio de amor para com todas as raças. Ao lado do branco, quero ajoelhar diante da cruz e agradecer. Quero enterrar o ódio atrás do campo de milho. Neste momento estamos todos reunidos diante do senhor. Vejo derramar a última gota de sangue. Estou escutando o senhor balbuciar que é para mim e para os seus irmãos brancos. E sua boca, Senhor, se prepara para dar um beijo em cada cor de pele.

Surge nova aurora. Sua via-sacra é esperança para o meu povo. O aloé em flor mostra o caminho para o alto. A cruz, na igreja da selva, anuncia o fim do nosso medo, o medo dos espíritos, que prendeu a nossa vida durante tantos anos. A paz e a alegria, o desejo do alto, vem com o homem de batina preta, que nos trouxe a cruz. A cobra-verde pendurada na árvore silvestre não nos amedronta mais como antes. O leopardo não pode tirar a alma de nosso corpo. A seca dos campos de milho pode somente fazer o nosso coração bater mais devagar na morte de fome, mas não nossa alma. E isso que diz o seu sacerdote. E nós cremos. Vida nova surge em nossa aldeia. Vem sem o nosso merecimento como a bola do sol de manhã.

Deixe-me andar com o senhor. Fique em nossa aldeia. E eu serei seu servo para sempre!

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do livro “As mais belas orações de todos os tempos”, de Rose Marie Muraro e Frei Raimundo Cintra. Editora Pensamento, São Paulo, 2001.