Em algum momento no final dos anos 1980, eu sugeri ao Ivan Pinheiro Machado, da editora L&PM, que lançasse uma coletânea só com os textos diretamente políticos do Luis Fernando Verissimo, aqueles que nunca tinham sido publicados em livro porque eram escritos para o jornalismo diário, faziam menção aos acontecimentos do dia e da semana e por isso, supunha-se, teriam ficado “datados”. Minha ideia era assumir explicitamente esse risco, pois o livro se chamaria “Crônicas datadas” e incluiria, antes de cada texto, um parágrafo contextualizando o que estava acontecendo naquele dia, ou naqueles dias.
O livro acabou saindo em agosto de 1995, com textos não só políticos mas também sobre cinema, música, etc. Como veio na esteira do grande sucesso do “Comédias da vida privada”, ganhou um título de continuação, ou de contraponto: “Comédias da vida pública”, e o subtítulo “266 crônicas datadas”. A ideia geral de explicar o contexto permaneceu, para boa parte dos artigos. Dois anos depois saiu “A versão dos afogados” ou “Novas comédias da vida pública”, repetindo a ideia das agora “347 crônicas datadas”, já sem os textos explicativos.
Mas eu nunca escondi que a minha motivação para a ideia era poder ter em livro um texto específico: aquele que o Verissimo escreveu logo depois do 11 de setembro - o mais antigo dos onzes de setembro, aquele que agora faz 50 anos, o do golpe no Chile e do tiro na boca de Salvador Allende. Naquela época eu tinha 16 anos, e acredito que até hoje nenhum texto tenha me tocado com tanta intensidade - nem o “Manifesto” de 1848 ou a morte do bebê Rocamadour em “O jogo da amarelinha”, nem a “Práxis do cinema” do Noël Burch ou o assassinato da velha em “Crime e castigo”, nem a “Metamorfose ambulante” do Raul Seixas ou a “Linguagem da loucura” do David Cooper.
Fácil dizer que é pelo esquerdismo explícito, pelo apelo sentimetal ao tratar de fatos políticos, pela inegociável declaração de solidariedade com os fodidos de sempre. E é também, claro. Mas onde ele me ganha, onde eu até hoje me encanto, e tento inutilmente imitar, é no estilo, na aparente simplicidade que esconde um pensamento complexo, e ainda tira sarro da nossa cara ao fingir que é de simplicidade que ele tá falando. Chamem uma criança de 86 anos.
“Comédias da vida pública”, o primeiro, começa com uma acusação feita pelo próprio Verissimo: “Giba Assis Brasil, Ivan Pinheiro Machado, Jó Saldanha e Fernanda Verissimo devem ser os procurados pelo leitor atrás de vingança”. Eu, que algum tempo antes tinha apenas dado a ideia, terminei encabeçando essa lista de “culpados”, que incluía um dos donos da editora e as duas responsáveis pela seleção dos textos. É uma daquelas culpas que dão um puta orgulho, claro. Mas o mais importante pra mim está nas páginas 38 e 39 do livro: a crônica “Simples”, que mesmo depois de 50 anos continua dizendo muito sobre nós. Simples como Verissimo.
A contextualização da crônica, redigida pela editora em 1995: “Dia 11 de setembro de 1973 um golpe militar liderado pelo General Augusto Pinochet derrubou e assassinou o presidente eleito Salvador Allende, iniciando uma das ditaduras mais cruéis e duradouras da América Latina.”
SIMPLES
Luis Fernando Verissimo
13/09/1973
As coisas são simples, são mais simples do que elas mesmo pensam. Curioso como a gente complica as coisas no ato de tentar entendê-las. É como se a simplicidade fosse apenas a verdade dos simples e que por trás dela, sim, está a secreta, a difícil explicação de tudo, e nunca a explicação completa. E no entanto o ponto de partida é o ponto de chegada, a premissa é a conclusão, a primeira impressão dispensa todas as outras. Uma criança de três anos compreenderia isso. Chame uma criança de três anos, depressa.
Veja como é simples a América Latina. Simples como o a-bê-cê. A, existe os que têm, B, existe os que não têm nada, C, existe os que querem que seja assim para sempre. Simples como CIA.
Mas espera aí, não pode ser só isso. Isso é uma simplificação grosseira, é a velha e batida cartilha da esquerda, certamente nós, homens sofisticados, adultos informados, podemos ir mais fundo do que isso. Mas é exatamente, simplesmente, isso. Pergunte a uma criança de três anos.
Era assim quando o primeira branco encontrou o primeiro índio na primeira praia. “Eu, senhor. Tu, escravo. Para sempre”. O primeiro índio que quis protestar levou um tiro na boca, sua casa foi arrasada e pilhada, os outros entraram na linha. De vez em quando outro índio tenta protestar, às vezes até algum branco que toma as dores dos índios. E o seu fim é o mesmo. Que sirva de lição.
As dores dos escravos. A fome dos escravos. A doença dos escravos. O abandono dos escravos. A exploração dos escravos. Velho, batido, piegas, simples. O desprezo dos senhores. A inconsciência dos senhores. A violência dos senhores. A arrogância dos senhores. Simples como um melodrama barato.
Há as atenuantes, as tangentes, as variáveis, as reversões, as inversões, as perversões, as revisões, as exceções (os brancos que tomam as dores. A que dá tudo o que tem, B que ganha na Loteria, C que se distrai, padres com remorsos, militares com dúvidas, adidos com segundos pensamentos) e retórica, e sociologia, e social-democracia e projetos e impactos e pactos e o diabo. Mas nada altera a grosseira simplificação do primeiro encontro. Nós, brancos. Eles, índios. Nós só seremos senhores enquanto eles forem escravos. Só viveremos como senhores enquanto eles viverem como escravos. Simples.
A primeira impressão que se tem da América Latina é de que existe uma minoria que tem tudo e uma maioria que não tem nada, e um interesse de que seja assim para sempre. Este é um simples ponto de partida, uma criança de três anos vê isso. Daí, podemos então elaborar uma elaboração elaboradíssima e, com gráficos, diagramas, cursos no exterior, notas ao pé da página, bibliografia, fundos de fundações, algumas palavras em inglês e um doutorado ou a cadeia no fim de tudo, concluir que a secreta explicação das coisas é que na América Latina existe uma minoria que tem tudo e uma maioria que não tem nada e um interesse de que seja assim. Para sempre.
Quem tenta protestar leva um tiro na boca. O simples desenlance para um simples melodrama. Que sirva de lição.