Balancê

Na passagem do 40º aniversário da pré-estreia de VERDES ANOS, esta semana, mando mensagem pra alguns velhos e queridos amigos e parceiros, “hoje já não tão verdes”. Ontem o Marcel Dumont, um deles, o que mora mais longe hoje em dia, responde de Nova York: “como eu sei lembrar de vocês”.

No banho, a partir desse gatilho, a mente ociosa, em vez de se fixar na melodia e na letra diretamente citadas, “Trilhos urbanos” do Caetano (“O melhor o tempo esconde / Longe, muito longe / Mas bem dentro aqui”), vai buscar a citação da citação, “Gal cantando Balancê”, os versos de Alberto Ribeiro e João de Barro que eu saio de casa cantando sem cantar:

Você foi minha cartilha
Você foi meu abecê
La-la-la-ra-la-la-ra-la-la-ilha
O balancê, balancê

Mas o que será esse terceiro verso, que rima em ILHA? Atravesso a Protásio Alves em direção ao corredor de ônibus e nada. Não me vem.

La-la-la-ra-la-la-ra-la-la-ilha

Sempre me fascinam esses retratos incompletos, esses pedaços de memória que faltam. Mas, em vez de apreciar a impermanência, o que não está mais ali, a mania é ficar escarafunchando até cobrir o buraco com alguma memória, suposta ou recomposta, eventualmente até documentada, mas sempre inventada. Pra quê? Não sei.

Sei que, no ônibus até a Unisinos, o lado direito fica tentando lembrar, e nada, e que em vez disso o lado esquerdo (ou será o contrário?) vai compondo decassílabos alternativos:

E agora escuto no rádio de pilha
Pois nenhum homem é só uma ilha
Meu namorado fugiu pra guerrilha
Vamos agora dançar a quadrilha
Entro o ano novo comendo lentilha
Não joga o jogo nem se desvencilha
Passa o domingo em paz e em família
Pesca no rio é só de carretilha
Cravo, tomilho e salsaparrilha

Quase perco a parada da Nilo Peçanha tentando completar dez. Mas aí, já na passarela, vem o estalo, a voz da Gal, como a gente ainda sabe lembrar - e sem recorrer ao Google, o que é raro hoje em dia:

Por isso eu sou a maior maravilha
No balancê, balancê.

Pois é. Já diziam Bebo e Cigala (outra revelação do Caetano) em “Vete de mi”: “Como es mejor el verso aquel / que no podemos recordar”. Pois é claro que essa “maior maravilha” está longe de ser o melhor do Braguinha.

Chego na sala 308 pensando que não importa, não é disso que se trata. Nunca foi. Daqui a pouco começa o dia de trabalho.