Desde que o Guel Arraes e eu começamos a pensar na adaptação para o cinema de “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, tínhamos em mente duas ideias: a primeira, usar o máximo que fosse possível as palavras do romance; a segunda, trazer a história épica de Riobaldo para os dias atuais - ou para um futuro muito próximo - e para um cenário que remetesse às periferias das grandes cidades brasileiras.
Nossas favelas já foram cenário de muitos filmes. Em “Rio, 40 graus” (1955) e “Rio, Zona Norte”(1957), marcos inaugurais do Cinema Novo, o olhar carinhoso e solidário de Nelson Pereira dos Santos volta-se para as favelas cariocas, humaniza seus personagens e revela um Brasil aos brasileiros. Em “Cidade de Deus” (2002), Fernando Meireles e Katia Lund renovam este olhar, atualizando a leitura de nossa brutal desigualdade, com foco na comunidade presa entre dois fogos: a polícia e os bandidos. Em “Tropa de Elite” (2007), de José Padilha, o ponto de vista é o da polícia: a favela é o espaço a ser conquistado e bandido bom é bandido morto.
Em “Grande Sertão” (2024), de Guel Arraes, assim como no romance de Rosa, o ponto de vista é o dos guerreiros, sejam eles integrantes dos diferentes bandos de fora da lei ou policiais, homens fortes, impiedosos, dispostos a matar ou morrer em nome da honra, numa guerra sem fim. Aqui, o realismo é insuficiente. “O senhor já viu guerra? Demais é que se está: muito no meio de nada”. A dimensão épica das grandes batalhas, dos gestos de coragem ou covardia, é sustentada pela inigualável prosa poética de Rosa. Riobaldo, Diadorim, Zé Bebelo, Joca Ramiro, não são menores que Aquiles, Heitor, Ajax, Eneias, guerreiros gregos e troianos, iguais na honra e na valentia. No cenário desta guerra, os brasileiros mais pobres, homens e mulheres, trabalhadores, estudantes, crianças.
Este era o nosso objetivo - as palavras de Rosa, a história da nossa ferocidade -, mas só podíamos imaginar como esta narrativa e estes acontecimentos tocariam nos brasileiros reais, os que vivem a realidade cruel destes conflitos, neste cenário. Isso, até ontem. Ontem, “Grande Sertão” foi exibido no Cine Carioca, em Bonsucesso, Rio de Janeiro. No final da sessão, em conversa com os atores e com o diretor, uma moradora da comunidade, não sei seu nome, disse o que sentiu ao ver o filme. Suas palavras, para mim, confirmam a afirmação de Novelli: “Quanto mais poético, mais verdadeiro”.
“O que eu senti vendo o filme… Eu senti dor por eu viver, eu como milhares de pessoas aqui dentro que vivem isso todos os dias, mas, pela primeira vez, hoje eu não senti ódio. Eu senti possibilidade. De ter um presente diferente, não um futuro, eu não consigo pensar no futuro, eu só consigo pensar no presente. Vou resumir o trabalho de vocês em possibilidade. Para quem está aqui dentro, isso é muito difícil. Eu tenho mil problemas, mas hoje eu estou me sentindo o máximo graças a vocês”.