“Nosso patrimônio é o universo”.
Jorge Luis Borges
Sou um homem, branco, legalmente idoso. Posso escrever uma história onde as duas únicas personagens são mulheres, jovens, uma negra e uma judia? Posso usar esta história para relembrar os horrores do racismo brasileiro e do holocausto?
Minha resposta é: sim, posso, devo fazê-lo. O dramaturgo, por definição, tem a obrigação de ver o mundo por diferentes e - nas boas histórias - conflitantes pontos de vista. O autor, por definição, tem o dever de ser livre. O autor deve escrever sobre o que quiser e ser lido por quem quiser. Cito dois ilustres parceiros de opinião: Martin Amis e Jorge Luis Borges.
O inglês Martin Amis, em “Inside Story”, comenta e recepção ao seu romance “Zona de interesse” - que virou um ótimo filme - que se passa durante a Segunda Guerra, na Alemanha, na casa da família do comandante de um campo de concentração.
“A Alemanha pós-guerra obviamente teve o trabalho mais árduo a fazer para chegar a um reconhecimento sem ilusões. […] Não só a criminalidade nazista faz parte da conversa nacional, de forma muito significativa, os jovens querem falar sobre isso. E tem que ser uma ‘cura pelo diálogo’, uma longa e nauseante repetição: qual outra maneira poderia haver? E agora a Alemanha se tornou a primeira nação na Terra a erguer monumentos à sua própria vergonha. Então eu esperava que os alemães tomassem o meu romance como um acréscimo menor ao debate incessante. Eles não fizeram isso. Quase todos rejeitaram o livro de imediato por princípio literário: eu tinha, em algumas ocasiões, recorrido à sátira (‘o uso do ridículo, ironia, sarcasmo, etc., para expor a tolice ou o vício’); e os críticos alemães insistiram que o humor não poderia coexistir com a seriedade. Este é uma crença primitiva que praticamente apaga o cânone anglófono. O fato é que a seriedade - e a moralidade, e, de fato, a sanidade - não podem existir de forma alguma sem o humor. […] Pode ser que os alemães, embora aceitando plenamente que o Nacional-Socialismo foi atroz, estivessem de alguma forma relutantes em admitir que também era ridículo.
[…] Eu conheço a teoria do “excepcionalismo do Holocausto”, que tem uma aplicação literária: na sua forma mais direta, argumenta que o Holocausto é um assunto que apenas os historiadores têm o direito de tratar. O que tem força emocional: é um apelo à uma reticência respeitável. No entanto, sou de opinião que nada, absolutamente nada, deveria ser protegido da visão do escritor. Se esta é a visão de um fundamentalista literário, então eu sou um. Nesse caso, aqui vai outra lição. A territorialidade não tem lugar na literatura. Ignore educadamente todos os avisos sobre “apropriação cultural” e o resto. Vá aonde sua caneta o levar.”
Jorge Luis Borges, em Discussão (1932), especula sobre um dilema: se o escritor argentino deve produzir uma “literatura argentina”, seguir uma tradição.
“Meu ceticismo não se refere à dificuldade ou impossibilidade de resolvê-lo, mas à própria existência do problema. Creio que se nos depara um tema retórico, apto para desenvolvimentos patéticos; mais que de uma verdadeira dificuldade mental, entendo que se trata de uma aparência, de um simulacro, de um pseudo-problema. […] Não sei se é preciso dizer que a ideia de que uma literatura deva se definir pelos traços diferenciais do país que a produz é relativamente nova; também é nova e arbitrária a ideia de que os escritores devam buscar temas de seus países. Sem ir além, creio que Racine nem sequer teria entendido uma pessoa que lhe houvesse negado o direito ao título de poeta francês por ter buscado temas gregos e latinos. Creio que Shakespeare se teria assombrado se tivessem pretendido limitá-lo a temas ingleses, e se lhe tivessem dito que, como inglês, não tinha o direito de escrever Hamlet, de tema escandinavo, ou Macbeth, de tema escocês. O culto argentino da cor local é um recente culto europeu que os nacionalistas deveriam rejeitar por ser forâneo.
Encontrei dias atrás uma curiosa confirmação de que o verdadeiramente nativo costuma e pode prescindir da cor local; encontrei esta confirmação na História do Declínio e Queda do Império Romano, de Gibbon. Gibbon observa que no Alcorão, livro árabe por excelência, não há camelos; creio que se houvesse alguma dúvida sobre a autenticidade do Alcorão, bastaria essa ausência de camelos para provar que é árabe. Foi escrito por Maomé, e Maomé, como árabe, não tinha porque saber que os camelos eram especialmente árabes; para ele, eram parte da realidade, não tinha porque distingui-los; em compensação, a primeira coisa que um falsário, um turista, um nacionalista árabe teriam feito seria povoar de camelos, de caravanas de camelos, cada página; mas Maomé, como árabe, estava tranquilo: sabia que podia ser árabe sem camelos.”
(…)
“Os nacionalistas fingem venerar as capacidades da mente argentina, mas querem limitar o exercício poético dessa mente a alguns pobres temas locais, como se nós, argentinos, só pudéssemos falar de arrabaldes e estâncias e não do universo. […] Devemos pensar que nosso patrimônio é o universo; experimentar todos os temas, e não nos limitarmos ao argentino para sermos argentinos: pois ou ser argentino é uma fatalidade, e nesse caso o seremos de qualquer modo, ou ser argentino é mera afetação, uma máscara. Creio que, se nos abandonarmos a esse sonho voluntário que se chama criação artística, seremos argentinos e seremos, também, bons ou toleráveis escritores.”
Jorge Luis Borges, Discussão (1932)