Quem nos ensina mais sobre o mundo, sobre os outros e sobre nós: o cérebro ou o coração? “A gente só sabe bem aquilo que não entende.”, diz Riobaldo. É verdade?
A comédia “Trabalhos de amor perdidos” (Love’s Labour’s Lost, 1595) é um dos três argumentos originais de Shakespeare, não há fonte conhecida. (Os outros dois são “Sonhos de Uma Noite de Verão” e “A Tempestade”). O enredo: Ferdinand, o Rei de Navarra convoca três nobres amigos - Berowne, Longaville e Dumain - para ficar um ano em reclusão completa, apenas estudando, sem contato com mulheres. Berowne, o protagonista da peça, argumenta que estudar é importante, mas viver e namorar também é. De qualquer maneira, a promessa de reclusão, estudos e castidade dura “menos que o mi de um minuto”. A bela Rosalina, Princesa da França, chega com suas lindas damas de honra, acampa nos jardins do palácio e a peça vira um festim de poesia, sedução e algum erotismo explícito, além de ter ótimas piadas, como sempre.
“Trabalhos de amor perdidos” serve de pretexto para William exercitar sua admirável poesia, grande parte é escrita em versos. Logo na cena um do primeiro ato, Berowne apresenta ao Rei (em versos, com rimas: ABABCC), a sua tese de que estudar não é tudo na vida. Berowne faz uma brilhante defesa da capacidade de perceber o mundo de forma intuitiva, contra o conhecimento acadêmico e cartorial. O Rei pulveriza a eloquência de Berowne com uma frase curta, cheia de aliterações, paradoxal e irônica. É impossível não perder muito em qualquer tradução, arrisco a minha, mantendo os versos e as rimas:
BEROWNE
Os padrinhos da luz no firmamento
listam nome e endereço das estrelas,
mas não têm nas noites claras mais alento
que viajantes felizes só por vê-las.
Saber nomes é saber tão só da fama.
Dê o nome da estrela quem a chama.
REI
Sábias sentenças contra a sabedoria!
[O original: Berowne - These earthly godfathers of heaven’s lights / That give a name to every fixed star / Have no more profit of their shining nights / Than those that walk and wot not what they are. / Too much to know is to know nought but fame; / And every godfather can give a name. Ferdinand - How well he’s read, to reason against reading!]
Na terceira cena do quarto ato, Berowne defende que o amor, “que se descobre pela primeira vez nos olhos de uma mulher, não vive apenas trancado no cérebro. Ágil como os espíritos, corre na velocidade do pensamento por todos os sentidos, a cada um dobrando em força, elevando-os muito acima de suas funções e de seus ofícios. Os olhos de quem ama farão a águia parecer cega. O amante ouvirá os menores ruídos, que escapariam ao mais alerta dos ladrões. O toque do amor é mais suave e sensível que as delicadas antenas do caracol. O gosto do amor faz um manjar parecer insípido. (…) [Os olhos das mulheres] são os livros, ciências e academias que revelam, contém e alimentam o mundo; sem eles nada alcança a perfeição.”
[O original: But love, first learned in a lady’s eyes, lives not alone immured in the brain, but, with the motion of all elements, courses as swift as thought in every power, and gives to every power a double power, above their functions and their offices. A lover’s eyes will gaze an eagle blind; a lover’s ear will hear the lowest sound, when the suspicious head of theft is stopp’d: love’s feeling is more soft and sensible than are the tender horns of cockled snails: love’s tongue proves dainty Bacchus gross in taste. (…) [Women’s eyes], they are the books, the arts, the academes, that show, contain, and nourish all the world. Else none at all in aught proves excellent. (IV,3)]
Encontrei tema semelhante - a disputa entre coração e cérebro - no poema “Chico Viola”, de Catullo da Paixão Cearense. (Poemas Bravios, Ed. Bedeschi, Rio de Janeiro, 1939). O violeiro do sertão Chico Viola responde ao “doutô”, homem culto da cidade, que insiste que Chico deve aprender a ler. Chico se pergunta: “Prá quê? Pruquê?”
“Nos estripúque do mundo
Não se prende o a-b-c;
Mas porem eu lhe garanto
Que é só nesse bafafá
Que a gente aprende a sofrê.
Eu só conheço dois livro:
O Tempo e, depois, o Amô
Seu doutô, ói que o tempo
Sabe mais que um doutô!
Não preciso óiá pros livro
Prá sabe como se véve,
Pruquê eu não sou abiúdo.
Os livro ensina a sabê,
Mas porem a gente amando,
Só cum o Amô, sabe tudo.”
Cérebro ou coração? A resposta, como quase sempre, parece estar no equilíbrio. Os kanjis, um dos sistemas de escrita da língua japonesa (baseado em ideogramas chineses, alguns guardam resquícios das imagens que lhes deram origem), são usados para evocar palavras, ideias, ações, sentimentos, seres, objetos, elementos da natureza, adjetivos, verbos. Muitos kanjis são feitos pela composição de dois símbolos que, dialeticamente, formam um terceiro. Por exemplo: cérebro e coração, juntos, significa “pensar”. Faz sentido. E faz pensar.