Aos formandos do CRAV 2021-2024

AOS FORMANDOS DO CRAV 2021-2024
(Discurso de paraninfo da turma)

Steven Spielberg tinha 6 anos de idade quando quis recriar, com uma câmara caseira e um trenzinho elétrico, uma cena que ele tinha visto no cinema. Na Itália destruída pela guerra, o jovem Federico Fellini pensava que só era possível fazer cinema nos Estados Unidos, até que Roberto Rossellini, 14 anos mais velho, o convenceu do contrário. Ingmar Bergman trocou um exército inteiro de mais de cem soldadinhos de chumbo por uma lanterna mágica, um projetor de cinema movido a manivela e iluminado por lâmpada de querosene, que infelizmente o irmão dele (e não ele) tinha ganhado de presente de Natal. Francis Ford Coppola tinha 17 anos quando assistiu “Outubro”, de Sergei Eisenstein, numa segunda-feira, e na terça decidiu que queria ser cineasta.

Por que uma pessoa decide fazer cinema? Por que uma jovem ou um jovem de 18 ou 20 anos de idade decide estudar audiovisual? Cada uma, cada um de vocês deve ter uma resposta, até porque essa foi a primeira pergunta que vocês ouviram quando chegaram no CRAV, quatro anos atrás. Mas uma resposta não chega. Porque é claro que ninguém toma uma decisão que é pra toda a vida, ou que pode ser pra toda a vida, por um único motivo.

Mas certamente tem um momento em que a pessoa toma uma decisão, e naquele momento o motivo pode ser um só, ou mesmo nenhum que seja identificável. Pode ser um filme que a gente viu e que por algum motivo se tornou mais importante que todos os outros filmes, mas pode ser outra coisa. Pode ser um livro, uma música, um quadro, uma coreografia, um artigo, uma viagem, a mensagem de um amigo, uma avó que conta histórias. Ou talvez uma imagem que a gente vê ou nem vê direito, um reflexo que foge, um sonho que a gente esquece quando acorda, um som estranho, uma memória da infância associada a um cheiro ou a uma árvore. Uma vontade de contar isso pra alguém, de mostrar pra alguns, de deixar registrado pra que o mundo inteiro, quem sabe, um dia veja. Uma vontade de fazer cinema.

Caetano Veloso revelou que na adolescência queria fazer cinema, mas acabou virando músico pra não ter que acordar cedo. Cinema precisa de luz, e a luz natural é um recurso que não pode ser desperdiçado. Músicos preferem a noite, e pensando bem alguns cineastas também.

Billy Wilder uma vez disse que queria fazer bons filmes para não decepcionar o funcionário da imigração que carimbou o seu passaporte quando ele chegou nos Estados Unidos, fugindo do nazismo. Isso faz 90 anos, mas toca em dois assuntos que infelizmente voltaram a ser atuais nos últimos anos, nos últimos dias: o direito à imigração, a resistência ao fascismo.

Joaquim Pedro de Andrade, ao responder em 1987 para o jornal francês Libération a pergunta “Por que você faz cinema?” deu nada menos que onze respostas - e o texto completo acabou virando letra de uma bela canção da Adriana Calcanhoto. Algumas respostas do Joaquim Pedro são ótimas: “Para viver à beira do abismo.” “Para correr o risco de ser desmascarado pelo público.” Ou: “Porque de outro jeito a vida não vale a pena”. Mas também: “Porque eu vi ‘Simão do deserto’”, que é um filme de Luis Buñuel.

Já o espanhol Buñuel, uma ou duas gerações antes, era estudante em Madri há mais ou menos cem anos quando assistiu um filme de Fritz Lang, “A morte cansada”, e sentiu, sem sombra de dúvida, que queria fazer cinema. Cineastas influenciam cineastas? Não, mais do que isso: pessoas influenciam pessoas.

Cineastas mulheres (como a maioria desse grupo aqui), cineastas LGBT, cineastas PCD, cineastas negros ou indígenas certamente têm respostas específicas para a pergunta: “Por que você resolveu fazer cinema?”. Em alguns casos, fazer cinema também é uma afirmação de potência: se eu posso, outros como eu também podem. Acreditem ou não, mas algumas décadas atrás, guardadas as devidas proporções, fazer cinema no Rio Grande do Sul também era uma espécie de afirmação de potência.

Profissões mudam. Surgem e desaparecem. Conselheiro do rei, linotipista, acendedor de lampiões já foram profissões respeitáveis algumas décadas ou alguns séculos atrás. Mas há menos de 15 anos ninguém tinha ouvido falar em projetista de sustentabilidade, ou em analista de big data, ou em engenheiro de prompt.

Quando as ocupações das pessoas começam a mudar muito rápido, a surgir e desaparecer e se transformar num ritmo realmente acelerado, isso coloca em xeque não só a trajetória individual das pessoas, mas também o sistema educacional: que tipo de profissional se forma numa sociedade em mutação?

Em 2009 a IBM mandou uma mensagem de ano novo aos seus funcionários que era assim: “Estamos preparando estudantes para profissões que ainda não existem, que usarão tecnologias que ainda não foram inventadas, para resolver problemas que ainda nem sabemos que vão existir.”

Cathy Davidson, educadora norte-americana da New York City University, escreveu em seu livro “Now you see it” que, das 3 milhões de crianças que entrariam na escola primária dos Estados Unidos naquele ano (2011), 65% iriam trabalhar nessas tais profissões “que ainda não existem”. Isso faz mais de 10 anos, essas crianças são vocês, que agora estão saindo da universidade e entrando no mundo do trabalho. Aquele futuro já chegou, ou continua chegando.

Pouco mais de 20 anos atrás, quando a Unisinos resolveu criar o primeiro curso superior de audiovisual no sul do Brasil, e me chamou para participar do projeto, a profissão de cineasta já existia há mais ou menos um século, mas o conceito de profissional do audiovisual era ainda muito difuso. Cineasta era sinônimo de diretor de cinema, ou então era alguém que ainda não conseguiu ser diretor, ou que desistiu de ser diretor. O cineasta era um artista. O profissional do audiovisual é um artista? Será que, ao trocar a ênfase, de cinema pra audiovisual, e de cineasta pra profissional do audiovisual, nós estamos de alguma maneira negando que isso que nós fazemos é arte? Ou que, entre muitas coisas, também pode ser arte?

O Curso de Realização Audiovisual da Unisinos, o CRAV que vocês conhecem, já mudou de São Leopoldo pra Porto Alegre, do turno da tarde pro da manhã, de trimestral pra semestral, de três pra quatro anos de duração, já mudou de coordenação, de professores, atualizou o currículo, ajustou procedimentos, integrou exercícios e critérios de avaliação. Mas permanece com algumas ideias básicas, que resistiram a esses vinte anos de mudanças no CRAV, na Unisinos, no mundo do audiovisual e no mundo propriamente dito.

Uma dessas ideias é que, entre ser um curso teórico e um curso prático, nós escolhemos os dois. Se alguém quiser cursar o CRAV pra ser um técnico do audiovisual, vai ter que conhecer teoria. Se alguém quiser cursar o CRAV pra seguir uma carreira acadêmica, vai ter que realizar filmes.

Outra ideia é que o nosso conceito de audiovisual é o mais amplo possível: o cinema é a base, é a matriz, é de onde veio a linguagem, mas audiovisual é muito mais do que isso. Onde houver imagens em movimento acompanhadas de som, existem profissionais que criaram essas imagens e esses sons, às vezes sem qualquer pretensão artística, às vezes tentando ser arte, às vezes sendo - até sem querer.

Uma terceira ideia é que ninguém faz audiovisual sozinho, e mais do que isso: que nenhuma obra audiovisual é criada por uma única pessoa. Então a teoria pode ter aprendizado individual, mas a prática da realização é sempre e necessariamente coletiva. Daí a nossa ênfase no trabalho em equipe, e nas atividades que valorizam o trabalho em equipe.

E, como consequência disso, uma outra ideia fundamental é a da valorização das múltiplas autorias: o diretor é autor, sim, mas o produtor também é autor, e o diretor de fotografia, e o montador, e o roteirista, e o animador, e o diretor de arte e o diretor de som… O diretor é o principal responsável por fazer com que todos esses autores façam um único filme. Fazer audiovisual é fazer parte de uma comunidade criativa, e o CRAV, respaldado pela Unisinos, nunca abriu mão desse conceito.

Vocês, da turma 2021, escolheram o CRAV num momento particularmente dramático. Estávamos entrando no segundo ano de pandemia, vocês já tinham passado o ano anterior inteiro trancados em casa, assistindo aulas online, e certamente esperavam da experiência universitária um pouco de convivência, de aprendizado em equipe, de comunidade. Por que, naquele momento, vocês não optaram por uma profissão mais antiga, como Medicina ou Direito ou Arquitetura? Ou por uma mais nova, como Engenharia de dados, Robótica ou Comunicação digital?

Cada um de vocês sabe por quê. Ou já soube, mas agora não tem tanta certeza. Ou tinha um motivo muito claro, que agora já não é tão importante porque vocês descobriram outros motivos. Acho inclusive que cada um dos colegas aí do lado é um motivo. Se hoje vocês ainda querem fazer audiovisual, é porque vocês atravessaram juntos o isolamento, as aulas online e as presenciais (quando voltou a ser possível), os exercícios, os pareceres, os filmes, a enchente, as dúvidas. Também os colegas que, por alguma circunstância, só vão estar vestindo essa linda e ridícula toga no ano que vem, ou mesmo os que no meio do caminho optaram por fazer outra coisa, são motivos.

A questão agora é outra: não mais por quê fazer audiovisual, mas para quê fazer audiovisual. Que tipo de filmes, vídeos, programas, séries, clipes, ficções, documentários, animações, experimentais, publicitários, musicais, eróticos, religiosos, políticos, dramáticos, cômicos, vocês vão fazer, ou ajudar a fazer, ou coletivamente fazer? Que projetos audiovisuais vocês vão criar e fazer acontecer, que projetos vocês vão lutar pra participar de alguma forma criativa, que projetos vocês até aceitariam participar em determinadas condições, que projetos vocês vão recusar? Com quem vocês querem trabalhar coletiva e criativamente, com quem vocês não aceitariam trabalhar? Que tipo de obra audiovisual importa pra vocês agora?

Vocês, da turma 2021, saem do CRAV em outro momento particularmente dramático. Talvez aqui seja apenas um velho de quase 70 anos falando, mas o mundo está doente. Projetos políticos que causaram muita dor no planeta inteiro cem anos atrás estão voltando, e quem não conhece história tende a encará-los como coisa nova, ou inofensiva. Fascismo não é novo. Preconceito não é inofensivo. Intolerância religiosa não é religião. Quando essas coisas se juntam, a História mostra: dá merda. Com o agravante de que agora, cem anos depois, o próprio planeta está doente.

Mas não esperem que eu diga aqui que vocês têm alguma responsabilidade específica sobre isso. Como cidadãos, sim, todos nós, cada um de nós é responsável pelo mundo que vamos deixar pras próximas gerações. E lidamos com essa responsabilidade na medida das nossas capacidades, do nosso alcance, do nosso empenho. Todos nós.

Mas como profissionais criativos do audiovisual (ou pra simplificar: como cineastas) vocês têm uma responsabilidade ainda maior, que é com o imaginário de cada um de vocês. Ser fiel ao seu próprio imaginário. Sendo que o imaginário é justamente o conjunto daqueles motivos, conscientes ou inconscientes, que trouxeram cada um de vocês até aqui.

Eu não sei como vai ser o mundo daqui a vinte anos, mas espero e acredito que ele vai estar povoado de imagens e sons criados por vocês e por cineastas da geração de vocês. E essas imagens e sons, é claro, vão ser fundamentais para constituir o imaginário das próximas gerações. Como tem sido.

Que imagens vão ser essas, que sons vão ser esses? Vocês me digam. Vocês me mostrem.

Giba Assis Brasil, paraninfo
Teatro da Unisinos, 22/02/2025