Jorge Furtado fala n'O Globo sobre "Lucas Camacho Fernández"

JORGE FURTADO: ‘SE O LIVRO FOR BOM OU RUIM, SOU O ÚNICO CULPADO’
Por Emiliano Urbim - Porto Alegre
O Globo, 07/01/2023 | 07h22


Ao lançar o romance histórico “As aventuras de Lucas Camacho Fernandez”, cineasta e escritor gaúcho fala sobre perspectivas para a cultura, adaptação de Guimarães Rosa e criação: ‘A literatura é solitária’

Na tarde em que Jorge Furtado recebeu o repórter sob o pretexto de falar de seu livro novo, o romance histórico “As aventuras de Lucas Camacho Fernandez”, e futuros projetos, o clima era de nostalgia.

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Há dias o cineasta gaúcho de 63 anos vinha postando nas redes retratos com as equipes dos filmes e séries que dirigiu e escreveu - obras celebradas, premiadas e estudadas, como “Ilha das Flores”, “O homem que copiava”, “Saneamento básico, o filme”, “Doce de mãe”, “O mercado de notícias” e “Mr. Brau”.

As fotos tinham motivo: comemorar os 35 anos da Casa de Cinema de Porto Alegre, produtora da qual Furtado é fundador e sócio com Nora Goulart, Ana Luiza Azevedo e Giba Assis Brasil e que lança este ano na Globoplay uma série ambientada no universo de eSports, “Dragon”, criada por Tiago Rezende. Numa sala de reunião da Casa repleta de cartazes de produções e troféus para as mesmas, Furtado se diverte com alguns comentários sobre seus posts.

- As pessoas dizem: “Nossa! Quanta gente pra fazer um filme!” É, muita gente - ele diz, desviando o olhar para uma cópia de seu novo livro, trazida pelo entrevistador. - E literatura é o contrário, totalmente solitária. Se o livro for bom ou ruim, sou o único culpado (risos).

Autor de “Meu tio matou um cara e outras histórias”, do romance “Trabalhos de amor perdidos” e das dramaturgias “Pedro Malazarte e a arara gigante” e “O debate” (com Guel Arraes), até agora Furtado colheu reações amplamente favoráveis para “As aventuras”. Críticos elogiam a habilidade com que Furtado costura fatos incríveis e ficção verossímil para narrar a história do jovem negro Lucas Fernandez, personagem real que foi o primeiro a traduzir “Hamlet” para o português, em 1607, em circunstâncias muito especiais. Sua jornada une teatro, sonetos de Shakespeare (discretamente traduzidos por Furtado em notas de rodapé), viagens pelo Atlântico, piratas, naufrágios e os horrores da escravidão.

Mas sem spoiler do livro. Somente da entrevista a seguir, na qual o Furtado fala deste romance de peripécias reais, de levar ao cinema “Grande sertão: veredas” com Guel Arraes, dos desafios da cultura no governo Lula, da antiga obsessão com Shakespeare e outra, mais recente, com inteligência artificial, por onde começa o papo.

> Nas suas redes, você tem feito posts de textos gerados com inteligência artificial. É algum tipo de pesquisa?

É uma curiosidade de ver como funciona. Um exemplo: eu sugiro ao programa “cara narigudo se apaixona por mulher mas teme se revelar etc.”, a premissa do “Cyrano de Bergerac”. E ele já vem com todo o enredo, conhece o original. Então esses programas são úteis, sim, como alerta para clichês. Vão sempre no que já existe. Se te sugerirem um caminho, você já sabe, tem que inventar outro.

> Parece que em “As aventuras de Lucas Camacho Fernandez” você joga com isso. Parte dos clichês de aventura, de capa e espada, e insere elementos inusitados, a começar pelo protagonista.

Tudo começou com o Lucas. Encontrei ele em uma pesquisa sobre Shakespeare em 2011. Ele está no fragmento do diário de bordo de um capitão inglês que, a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, passou pela África, onde hoje é Serra Leoa, na época explorada por portugueses. Esse capitão, William Keeling, é incrível: encenava Shakespeare no navio para distrair a tripulação. E ele cita no diário um jovem negro chamado Lucas Fernandez, intérprete que falava línguas europeias e locais e faz tradução simultânea de “Hamlet” para português enquanto a peça rola no convés. Quem era esse cara? Como foi parar ali? Que fim levou? Parti desse elemento real para criar uma história com referências a Shakespeare - que, afinal, me trouxe o Lucas - e elementos de romance de ação, de peripécia.

> Como clássicos do gênero, como “Robinson Crusoé”, “Viagens de Gulliver” e “O Conde de Montecristo” te influenciaram?

São leituras de adolescência que ressurgem, pelo clima que elas têm, pela época que descrevem - sou fascinado por essa passagem da Idade Média para a Idade Moderna. E também pela narrativa própria desse tipo de livro, onde tudo se encaixa, uma coisa leva a outra, nada aparece por acaso.

> No meio da “sessão aventura” surgem cenas cruéis da escravidão. O contraste é intencional?

Sendo a história de um negro nos anos 1600, é inevitável falar de escravidão. E nessa parte não houve ficção, fui fiel aos documentos históricos. Inclusive, mais do que da escravidão, eu queria falar do escravismo, o sistema econômico que pressupunha capturar gente para trabalhar até a morte sob ameça de tortura extraindo ouro, colhendo algodão, produzindo açúcar. O sistema racionalmente previa que para uma pessoa comer pudim era preciso matar outras. Como a Humanidade chegou a esse ponto?

> Resenhas têm chamado o livro de “cinematográfico”, “visual”. O que acha do comentário?

O livro é, de fato, totalmente filmável. Bem fiel ao gênero, não tem muita narrativa psicológica, se concentra mais na ação.

> Por outro lado a narração reflete muita pesquisa, uma profusão de termos náuticos, militares, do universo do engenho, um vocabulário preciso.

O Guel Arraes leu e comentou que, quando for filmado, é preciso ter cuidado para não perder o narrador, ter atenção para isso. Eu falei que tudo bem, eu nunca vou conseguir dinheiro pra filmar essa história (risos) Quatro continentes, cidade cenográfica, naufrágio em tempestade, batalha naval entre inglêses e espanhóis… O romance tem essa liberdade, posso botar 150 navios que é o mesmo preço que cem.

> Uma história que você e Guel Arraes conseguiram transformar em filme é “Grande sertão: veredas”. Como foi adaptar Guimarães Rosa?

Eu e ele fizemos o roteiro pare ele dirigir. Buscamos manter o máximo de texto original. Acredito que, de todas as versões já filmadas do livro, esta é a que mais inclui Guimarães Rosa. As adaptações ficaram por conta de passar a história para o presente, o sertão dos jagunços virou a favela das milícias. Bandos armados, que têm laços com o poder, que justificam sua violência… É um conflito muito atual. A filmagem foi complexa, no auge da pandemia, mas o filme está incrível e deve estrear este ano.

> Você e Guel também escreveram a peça “O debate”, lançada em livro em 2021, que imaginou os bastidores do encontro final entre Lula e Bolsonaro na TV e virou filme de Caio Blat. O setor cultural sofreu muito com a pandemia e com o último governo. Qual a tua expectativa com a recriação do Ministério da Cultura?

Vai ter que recomeçar do zero. O último governo federal destruiu tudo, foi incompetente em todas as áreas e foi especialmente cruel com a cultura, eleita como inimiga. Mas mesmo assim a gente continuou fazendo filme, livro, TV, música. Não quero que pareça uma defesa da precarização, aquela expressão “flor do lodo”, mas a verdade é que a cultura brasileira é muito forte. Já passamos pela ditadura, pelo Collor, e agora por mais essa.