A GRANDE VIAGEM DA CRÍTICA DE CINEMA: APÓS 20 ANOS, REVISTA TEOREMA CHEGA À ÚLTIMA EDIÇÃO EM PAPEL
Daniel Feix
Zero Hora, 15/12/2022 - 18h00min
/ O futuro da publicação deve ser digital, e seu passado valoriza a reflexão como elemento fundamental do processo cinematográfico
Os olhos claros fugidios da atriz italiana Laura Betti, em uma imagem ressignificada por um filtro sépia-alaranjado, anunciavam: a R$ 4, era possível adquirir um exemplar da edição nº 1 da Teorema - Crítica de Cinema. “Foi num daqueles finais de tarde modorrentos do verão porto-alegrense, em dezembro de 1999, que começou a surgir (a revista)”, descreve o editorial à página 3, assinado pelo Núcleo de Estudos de Cinema de Porto Alegre, “um punhado de críticos e pesquisadores inconformados com a falta de espaços adequados à reflexão sobre a sétima arte no Rio Grande do Sul”. A data estampada na capa, agosto de 2002, ao lado do rosto de Laura Betti, indicava que mais de dois anos haviam se passado até que a Teorema efetivamente se materializasse.
Agora, duas décadas depois, com o lançamento da edição nº 32 (à venda a R$ 15), a publicação se despede, ao menos da forma como a conhecemos até então: uma revista impressa em papel. Após 20 anos, (até) a Teorema se rendeu ao formato digital.
É curioso notar que, com a internet, a citada falta de espaços adequados à reflexão tinha tudo para ser minimizada, no entanto, o que se vê é a persistência do desequilíbrio entre a produção de filmes, cada vez mais prolífica, e a reflexão, nem sempre suficiente para aprofundar o pensamento sobre essa produção - uma contradição justamente apontada no editorial de 2002. É que o desajuste não é de formato, ou suporte, mas da relação que estabelecemos com o pensamento. Se por um lado as reflexões mais rápidas e por isso superficiais seduzem (legitimamente) grande parte das pessoas que veem filmes, por outro essa prolificidade dificulta a compreensão do lugar histórico que cada um desses filmes ocupa. É preciso vê-los e se deter sobre eles para de fato compreendê-los, contudo, as reflexões mais rápidas que estão por toda parte já podem ter produzido uma sensação de esgotamento sobre eles. E, afinal de contas, há tantos outros aguardando para serem descobertos.
O tempo é uma das grandes questões da arte e do mundo contemporâneo, e um exame das 32 edições da Teorema faz pensar também sobre isso. Textos como o de Marcus Mello sobre Cidade dos Sonhos (de David Lynch, 2000) e o de Ivonete Pinto sobre os cinemas da Índia, do Egito e da Armênia, ambos na edição nº 1, realizam apanhados históricos incomuns em um contexto em que a reflexão que foge ao consumo veloz parece inevitavelmente associada ao modelo científico nem sempre palatável das publicações acadêmicas.
A leitura paralela de artigos publicados na Teorema é ainda mais reveladora nesse sentido, basta observar, por exemplo, o que Fernando Mascarello escreveu sobre Houve uma Vez Dois Verões (Jorge Furtado, 2001), ainda na edição nº 1, e Miriam Rossini, sobre Anahy de las Misiones (Sérgio Silva, 1997), já na edição nº 3. Há um ensaio historiográfico do cinema gaúcho nesse pequeno conjunto, com seu apego a certas tradições, seu ponto de virada, do pampa para a cidade (e o litoral), e tudo o que está implicado nesse movimento. Moldar esses paralelismos é um mérito do olhar coletivo, que inclui o debate prévio sobre o que será abordado a cada edição e a reverberação de certos temas, posteriormente, como se fosse um processo contínuo.
Na verdade a crítica é, sim, um processo contínuo, que o tempo (sempre ele) se encarrega de ir organizando. O crítico e seu editor, no caso, o grupo que depois abandonou o nome Núcleo de Estudos de Cinema de Porto Alegre, são agentes desse processo. E o que fica, no fim das contas, por melhor que sejam alguns textos especificamente, é a iniciativa da revista, ou seja, o resultado do processo como um todo. A contribuição efetiva para que os filmes não sejam apenas lançados e vistos, mas debatidos e compreendidos em seus significados históricos, vem do aprofundamento sistemático da reflexão, mais do que do exercício de reflexão isolado.
É claro que nesse processo a avaliação mais imediatista também pode se mostrar importante. Convém não subestimar aquele tipo de afeto despertado pelo primeiro impacto diante do que se vê na tela. A contribuição da crítica se dá igualmente nesse sentido, e mesmo uma publicação que busca o aprofundamento, como a Teorema, traz contribuições nesse sentido. Vide, por exemplo, o destaque dado pela revista, para ficar em exemplos da mesma edição (a de nº 30), aos brasileiros Arábia (Affonso Uchôa e João Dumans, 2017), em artigo escrito por Guilherme Carvalho da Rosa, e Baronesa (Juliana Antunes, 2017), por Leonardo Bomfim. Ainda que o editorial dessa edição traga um pedido de desculpas pelo atraso (“conseguir publicar uma edição neste histórico 2018 já é alguma coisa”), pode-se dizer que os elogios a esses que são dois dos grandes filmes nacionais contemporâneos vieram no calor da hora.
Nesse período mais recente, os editoriais da Teorema são eles próprios sinais do tempo vivido - para além do cinema. Falam em “resistência” e também em “reação”, temas que referenciam o contexto político de perseguição à cultura, as dificuldades financeiras de manutenção da revista e também as transformações às quais a arte cinematográfica foi submetida nos últimos tempos. Como os filmes, a crítica resiste. E reage. A Teorema digital que vem aí é uma prova.
Onde encontrar
A edição nº 32 da Teorema - Crítica de Cinema tem lançamento previsto para a noite de sexta-feira, na Livraria Taverna, em Porto Alegre. Está à venda, a R$ 15, na Cinemateca Paulo Paulo Amorim e na própria Taverna - espaços que ficam na Casa de Cultura Mario Quintana. O contato com os editores, inclusive para comprar edições antigas, pode ser realizado na página de Facebook da revista.