A PORRA DO SIGNIFICADO

por Carlos Gerbase
(junho de 2000)
originalmente publicado no Não 71

Dando seqüência à minha já cultuada série “Conversando com meus significados”, tenho que começar com um declaração: sou fã do cineasta Carlos Reichenbach, o Carlão. Gosto tanto dos seus filmes quanto da sua postura ideológica. Gosto tanto do estilo dos seus textos quanto de sua defesa intransigente da arte oculta, transgressora, não avalizada pelo sistema. É motivo de orgulho, para mim, dividir a coluna de Opinião na seção de Cinema do portal Terra (ex-ZAZ) com um sujeito talentoso e radical como ele.

Dito isso, acho que posso, com a consciência tranqüila, atacá-lo na jugular. Sei que ele responderá me chutando o saco e continuaremos amigos. Pois bem, este texto nasce da leitura de dois trechos da coluna do Carlão no Terra, o primeiro sobre a cineasta Norma Bengel e seu “O Guarani”, o segundo sobre Todd Solondz e seu “Felicidade”.

Os textos estão bastante separados pelo tempo (alguns meses), e certamente sua leitura simultânea (que se pretende complementar) não passa de uma absoluta recriação de minha parte, mas acho que tenho esse direito. Ou não? Os autores que se fodam. Os leitores são os reis. Então começo, pela ordem inversa à publicada, reproduzindo, na íntegra, o que o Carlão acaba de escrever sobre “Felicidade”:


FELICIDADE (Happiness) de Todd Solondz. Um caso típico de transgressão de festim. Realmente, o filme impressiona numa primeira visão. A tal história do exemplar pai de família que se revela aos poucos um pedófilo abominável, lembra, e muito, as traquinagens mais softs de Kevin Spacy em BELEZA AMERICANA, e assim como o filme de Sam Mendes, FELICIDADE também não resiste à ressaca do dia seguinte. Que me perdoem os leitores, mas mostrar esperma pingando ou espirrando na parede, não quer dizer absolutamente nada. Qualquer pornochanchada brasileira da década de setenta era mais subversiva que esse viés “crítico” e insolente que assola o cinema americano atual. Para dizer a verdade, há um certo tom reacionário nestes filmes “moderninhos”, que no fundo só contestam a miséria da democracia ianque. No fundo, são obras extremamente moralistas, porque seus disparos só atingem a classe média periférica. De tão suspeita, a contestação avalizada pelos grandes estúdios, sempre acaba sendo contemplada galhardamente pelo sistema. Àqueles que esperam chumbo grosso na boçalidade arrogante da matriz, recomendo qualquer filme, menos afetado e mais rascante, do nada diplomático Jack Hill.


O comentário de Carlão é respeitável. Eu o respeito, inclusive enquanto visão diametralmente oposta à minha. Eu considero “Felicidade” um dos melhores filmes que vi na vida, um exemplo clássico de obra híbrida (meio comédia, meio tragédia), brilhante, bem pensada, bem escrita, bem filmada, bem montada, bem quase tudo. Quem quiser saber o que acho do filme, sem se submeter a essa chuva de simplificações grosseiras, pode ir para www.zaz.com.br/cinema/opiniao/felicidade.htm

Mas eu tenho que, antes de qualquer coisa, sublinhar algumas expressões do Carlão. Primeiro, ele define “Felicidade” como A tal história do exemplar pai de família que se revela aos poucos um pedófilo abominável . Como é que é? Será que vimos filmes diferentes? Ao chamar o pai de família pedófilo de “abominável”, Carlão demonstra ter lido o filme de forma absolutamente reacionária. Justo ele, Carlão, que acusa o filme de ser reacionário, não percebeu que o maior dos méritos do filme é exatamente apresentar uma emoção humana - mais comum do que se imagina, mais normal do que se imagina, muito mais defensável do que se imagina (considerando a imaginação da classe média ocidental como modelo) - como algo abominável.

Quem chama o sentimento do pai de família de “abominável” é o Carlão, e não Todd Solondz. Este, filmando com sensibilidade, com senso de relatividade, com dialética, com, antes de qualquer coisa, humanidade e carinho, nos mostra o drama terrível de um ser humano preso de um sentimento que a sociedade define como absolutamente abominável. Solondz não faz juízo de valor, não critica, não absolve. Simplesmente conta a história e nos chama para o diálogo. Solondz faz Cinema. E aí vem o Carlão e acusa o personagem de “abominável”. É dose. Quem tem que usar essa palavra é a minha mãe, o pároco da Igreja Santa Teresinha e o editorial da Zero Hora.

O segundo trecho que sublinho é: …mostrar esperma pingando ou espirrando na parede, não quer dizer absolutamente nada. Qualquer pornochanchada brasileira da década de setenta era mais subversiva. Sinto muito, mas aqui o engano do Carlão é do tamanho do Maracanã. Nada contra as pornochanchadas (me diverti com várias), nada contra supostas cenas nacionais de esperma na parede (apesar de não lembrar de nenhuma), mas dizer que a pornochanchada era mais “subversiva” é dar ao gênero uma aura romântica e vanguardista que ele nunca teve. Eram filmes nem sempre ruins, nem sempre reacionários, mas sempre muito, muito, muito, muito longe de pretender dar ao esperma um significado além da comicidade mais rasteira.

Vamos admitir que alguns realizadores (como o próprio Carlão) conseguiram enfiar alguns elementos interessantes em filmes que só entravam no mercado pela porta da exploração do sexo, mas daí a generalizar, afirmando que “qualquer pornochanchada brasileira da década de setenta” é mais subversiva…” Claro, a intenção não é enaltecer a pornochanchada, e sim desmerecer “Felicidade”, mas por quê tamanha violência com o filme de Solondz? O Carlão, logo depois, explica porquê: Há um certo tom reacionário nestes filmes “moderninhos”, que no fundo só contestam a miséria da democracia ianque. No fundo, são obras extremamente moralistas, porque seus disparos só atingem a classe média periférica.

A grande culpa de “Felicidade” é servir ao sistema, é ser visto “só” pela classe-média. E aí, meus amigos, seguindo a receita do Carlão, teríamos que jogar milhares de filmes no lixo, teríamos que quebrar milhões de discos, teríamos de queimar bilhões de livros, pois todos eles, mesmo que obras-primas, foram devidamente vistos “só” pela classe média. Ou pior: “só” pela elite. Ou o povão lê Joyce, Thomas Mann e Machado de Assis? Eu iria mais longe: “nem” a classe média, em que me incluo, sem orgulho nem vergonha, vê os filmes de Jack Hill. Não vi, é uma falha de minha formação, mas tenho absoluta certeza que ele não fez filmes melhores que “Felicidade”. Longa vida a Jack Hill, à pornochanchada, ao esperma sem significado, mas prefiro a porra da significação de “Felicidade”.

Passo, agora, para o segundo texto do Carlão, mais uma vez reproduzido na íntegra:


No âmbito das querelas intestinas, é preciso ressaltar a ausência na festa da maior personalidade feminina do cinema brasileiro, Norma Benguell, transformada da noite para o dia, pela própria instituição federal, num dos bodes expiatórios das perversões da Lei do Audiovisual. Nesta história toda, construída com requintes de insânia e crueldade, o único erro da grande estrela foi ter aceitado as propostas escrunchantes de intermediários e investidores. Para quem não sabe, trata-se da malfadada recompra de certificados: “Eu te dou mil, você me repassa quinhentos por baixo da mesa, e se vira com o fisco.” Em resumo, o maior pecado de La Benguell foi ter concluído seu filme, O GUARANI, no desespero e ao preço aviltante do mais escândaloso tipo de agiotagem. Ouvi um respeitado colega afirmar que o silêncio de Norma sobre o assunto, tão cobrado pela mídia, tem a ver com ameaças e risco de vida. Mesmo não sendo adepto de Keith, chego a acreditar em tal afirmativa, pois tudo envolve muito dinheiro, poder e escândalo financeiro. Como aquele que realiza é sempre o mais fraco, a grande guerreira do cinema nacional se viu transfigurada em espantalho no meio do fogo cruzado dos mega-impérios da comunicação brasileira e no descaso cultural e humano dos proxenetas da captação. A bela festa da indústria audiovisual (indústria ?) teria sido mais nobre se Norma estivesse presente. Eu estaria lá, absolutamente sóbrio e careta em meio ao foguetório e vendaval de vaidades circunstanciais, para aplaudir de pé esta fortaleza humana, cujo empenho e dedicação a tão propalada ressurreição do filme nacional, ninguém tem o direito de colocar em questão.


Não quero e não vou entrar no mérito orçamentário da questão, apesar deste ser um bom assunto (e do qual, inclusive, tenho lembranças muito claras de certa reunião de realizadores do Festival de Gramado, bem antes da realização de “O Guarani”). Também não quero e não vou acusar a Norma Bengel, figura respeitável da história do cinema brasileiro, de qualquer coisa, antes que provas apareçam e antes que ela tenha ampla liberdade para se defender. Que fique bem claro: estou falando de cinema, de estética, de filmes. E aí sublinho esta frase do Carlão: O único erro da grande estrela foi ter aceitado as propostas escrunchantes de intermediários e investidores.

Único erro? Será que o Carlão viu “O Guarani”? É um dos mais lamentáveis filmes já feitos na história do cinema brasileiro. É ruim de doer. Doer muito. É, desde a sua concepção (filmar um grande clássico da literatura brasileira, sempre chamariz para empresas que querem colocar dinheiro em filmes “confiáveis”) até a sua produção (orçamento alto, em tempos de pouco dinheiro no mercado) um filme altamente conservador. Um filme dispensável sobre todos os aspectos. Um filme “abominável”, não no sentido moralista, mas no que ele tem mais “escrunchante” em sua proposta estética. É claro que Norma Bengel tem todo o direito de fazer um filme ruim, não há lei contra isso. É claro que Norma Bengel trabalhou pela “retomada” do cinema brasileiro. E é claro que o seu filme é absurdamente ruim. Ou não? Que se ergam as vozes em defesa de “O Guarani”!

Toda essa volta foi para chegar à porra do “Felicidade”. Como é possível chamar de “reacionário” a um filme que conta uma história densa, trágica e divertida sobre personagens muito bem construídos, e simplesmente ignorar a ruindade e o conservadorismo de “O Guarani”? Na defesa do cinema brasileiro, não podemos esquecer nossos erros, principalmente os estéticos, ou continuaremos a afugentar o público com filmes ruins e caros demais. Na defesa de um cinema engajado e transgressor, não podemos esquecer do mercado, de filmes baratos (como o filme de Solondz) que conseguem dialogar com a classe média, nosso público principal. Quem sabe o único. Aposto todas as minhas fichas na porra com significado de “Felicidade”. E tenho a convicção de que todos os cineastas brasileiros, sem exceção, podem aprender um pouquinho com ela.